27 dezembro 2006

Quase igual... mas diferente

Me perguntaram essa semana: “quem toca violão é violeiro?”. Não, não é. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa... Apesar do formato parecido, olhando de longe até parece tudo igual. Só parece.

A confusão vem de longe. No início do século passado, o termo viola era usado para se referir aos dois – violão e viola. Essa história começou em Portugal, um dos berços dos instrumentos que afinal de contas, se não são iguais, são parentes bem próximos. O violeiro e compositor Gustavo Pinheiro Machado explicou bem isso: “a viola tinha pais portugueses, o violão tinha pais espanhóis. Ambos eram netos de mouros e bisnetos de hebreus”.

Qual é a diferença então? A viola tem 800 anos. O violão, entre 200 e 250. A diferença principal entre os dois instrumentos é que a viola, um pouco menor que o violão, tem várias afinações e possui cinco ordens de cordas, o que totaliza dez cordas. Já o violão, além se ser maior, possui somente seis cordas individuais.

Mas a diferença entre a viola caipira e o violão vai muito além do número de cordas. O instrumento eleito por músicos como Almir Sater e Tião Carreiro, possibilita cerca de 30 afinações, batizadas com nomes inusitados, como rio abaixo (em sol), cebolão (em mi) e boiadeiro (em lá).

O fato é que essa dupla – talvez a mais famosa do Brasil – registrou até aqui fatos e situações dignos de permanecerem no tempo. Pessoas e histórias que vencem o tempo através da música...

25 dezembro 2006

Natal não é data

Pronto, acabou o natal. A gente passa o mês inteiro correndo atrás dos presentes, preparando a ceia, esperando o especial do Roberto Carlos... E aí pronto, acabou.

Eu amo o natal. Não a data. Porque a data passa assim num piscar de olhos. Luiz Carlos de Castro Palma – mais conhecido como “Batata” – é jornalista e produtor rural em Altinópolis, interior de São Paulo. Li um artigo seu que dizia “natal não é data, é lugar”. Taí, concordo.

Quando eu era criança o natal começava bem antes do natal... Primeiro chegavam os tios e primos de longe – era o primeiro sinal. Logo depois lá estava minha avó no terreiro apartando os frangos da ceia. No curral já esperavam o boi e o carneiro que fariam a festa nos dias seguintes. Sim, dias. Porque a festa não se resumia na ceia. Ela começava antes e terminava bem depois...

O cheiro da festa infestava a casa toda. Prá todo lado tinha alguém cuidando de algum detalhe. Ai começava a revelação do amigo secreto - que reunia nossa família, os empregados da fazenda e os amigos que vinham comemorar com a gente.
No meio do terreiro uma mesa improvisada com dois cavaletes e tábuas, exibia a fartura do sítio...

De repente a gente ouvia um barulho – sempre eram as crianças que ouviam primeiro. E lá vinha o Papai Noel empurrando uma carriola cheia de presentes. Um dia achamos a roupa do Papai Noel no guarda-roupa da minha mãe. E o natal ficou ainda mais engraçado...

Depois da ceia, no dia seguinte, a chapa do fogão a lenha sempre quente esquentava o que havia sobrado. E a festa continuava, até o último convidado ir embora e sumir lá na frente, depois do mata-burro...

“Natal não é data, é lugar”. Deve ser mesmo.

O natal desse ano já está acabando e enquanto eu estou aqui, escrevendo mais dos milhares de artigos de natal que surgem nessa época, não me lembro de nenhum natal mais gostoso do que os passados nessa época da fazenda. Realmente não era o natal, era o lugar...

Prá terminar o natal desse ano então, aí vai a letra de “Calix Bento” – prometo falar das folias de reis depois!

Ó Deus salve o oratório
Ó Deus salve o oratório
Onde Deus fez a morada
Oiá, meu Deus, onde Deus fez a morada, oiá
Onde mora o calix bento
Onde mora o calix bento
E a hóstia consagrada
Óiá, meu Deus, e a hóstia consagrada, oiá

De Jessé nasceu a vara
De Jessé nasceu a vara
E da vara nasceu a flor
Oiá, meu Deus, da vara nasceu a flor, oiá
E da flor nasceu Maria
E da flor nasceu Maria
De Maria o Salvador
Oiá, meu Deus, de Maria o Salvador, oiá


Acima, foto de Sérgio Araújo no acervo do Museu da Casa do Pontal, no Rio de Janeiro/RJ

08 dezembro 2006

O mago da viola

Apenas dez dedos... mas pareciam milhares

Numa época em que se fala tanto de magos – que vendem milhares de livros e arrebatam milhões em todo o mundo – resolvi hoje falar sobre o “mago da viola”: Renato de Andrade. Tenho falado bastante dele nos últimos dias e achei que já estava passando da hora de falar dele aqui.

Uns dizem que Renato ficou conhecido como “Mago da Viola” porque parecia ter mil dedos na hora de tocar – fato que fez esse mineiro de Abaeté ser reconhecido mundialmente como um dos gênios da música brasileira. Mas a história não pára por aí. Senta e escuta...

Diz que o Renato tinha um acordo com o “danado”, o “cujo”, o “mofino”, o “coisa ruim”... Aí uma vez perguntaram pra ele se a história era verdade. E ele, tinhoso que era, saiu com essa: contou que uma noite sonhou que estava no inferno. Ouviu de longe um som de viola. Foi ouvindo, ouvindo, seguindo aquele som... Quando não agüentava mais de curiosidade, perguntou para um capetinha que tava ali perto que ponteado rápido era aquele. E o capetinha respondeu: “é o satanás pelejando para imitar um tal de Renato Andrade". Verdade ou não, essa história está no encarte do CD A Viola e Minha Gente, que por acaso, traz a música Renato e o Satanás num ponteado rapidíssimo.

Todo violeiro se considera o melhor da região – não suportam a idéia da existência de outros tão bons quanto ele. Renato, que não era diferente, não confirmava, nem desmentia as histórias que contavam a seu respeito. O que é verdade mesmo na história do violeiro é que ele começou seus estudos musicais ainda moço – não com a viola, mas com um violino. Foi o primeiro a levar a viola caipira para as salas de concerto, inclusive nos Estados Unidos. E mesmo depois de meia década se dedicando à viola, dedilhava e estudava o instrumento que o fez tão conhecido todos os dias.

Parece até mais um causo, mas esse é verdade: Renato de Andrade foi – pelo menos até agora – o único violeiro capaz de tocar cinco mil notas por minuto. A rapidez dos seus dedos rendeu obras como “Formigueiro”, considerada entre as composições de Renato, a música de mais difícil execução. O jornalista Sérgio Gomes, estudioso da cultura caipira, explica que a música “Formigueiro” é inspirada em uma famosa peça clássica: “Ela é inspirada em Moto Perpetuo, de Paganini, um grande violinista italiano que criou esta obra exatamente pra mostrar a capacidade que ele tinha de realizar uma quantidade imensa de notas num mesmo compasso.” A rapidez de Renato Andrade na música Formigueiro chega a 15 notas por segundo!

O Mago da Viola, com seus casos e mil dedos, viajou fora do combinado no dia 30 de dezembro de 2005. Seu Manelim, outro violeiro mineiro dizia: "usa que serás mestre". Renato usou sua última violinha (teve mais de 30 durante toda a vida) até não poder mais. Onde ia, a viola ia junto. “Violão em todo lugar tem, mas viola não é assim”, dizia o violeiro. Renato foi mago, feiticeiro, violeiro... Cada um que o conheceu lhe dá um apelido diferente. Mas uma coisa ninguém discute, seu Manelim estava certo: Renato Andrade foi mesmo um mestre...

30 novembro 2006

Se um dia vocês virem as folhas amarelas...

Se um dia vocês virem as folhas amarelas, não reparem, foi a saudade quem pintou...

João Pacífico

(Fotos de Costa Rica, Mato Grosso do Sul)
Viver é um descuido prosseguido... (João Guimarães Rosa)

Quando vai chegando a noite
A natureza desmaia
O sereno vem caindo
Na folha da samambaia
Eu vou na biquinha d'água
E tiro o suor do rosto
Esperando a comidinha
Temperada com bom gosto
Chamo a lua pra catinga
Ao som da modinha boa
E misturo a cantoria
Com os bichos da lagoa
Urutau canta doído
Sapo boi marca o compasso
Afinado com o bordão
Da viola nos meus braços
Noite alta vou dormir
Para acordar bem cedinho
Pois não perco a alvorada
E o cantar dos passarinhos
Pra me desejar bom dia
Coroar o meu sossego
Eu recebo a visita Do cuitelinho azulego

MEU CÉU (Xavantinho/ Zé Mulato)

O sertão está dentro da gente e em toda parte.
(João Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas)

Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E na rede nas noites de frio
Meu benzinho me abraçava
Pra me agasalhar...
Mas agora, meu bem,
Vou-me embora,
Vou-me embora e não sei
Se vou voltar...
A saudade nas noites de frio
Em meu peito irá se aninhar
A saudade é dor pungente morena
A saudade mata a gente morena

A SAUDADE MATA A GENTE (João de Barro / Antônio Almeida)

20 novembro 2006

Cheiros e cores

Aí outro dia me perguntaram: “mas com tanta coisa prá escrever... Tinha que ser logo música caipira?”. Tinha uai... Eu gosto de música, ponto final. E amo música caipira. E gosto não se discute certo? Mas vamos discutir um pouquinho...

Desde que nossos amigos portugas apareceram por aqui, a música caipira tem sido representante daquilo que o Brasil tem de melhor e de mais puro. Misturou índios, negros, jesuítas, bandeirantes, tropeiros... Tudo no mesmo balaio, de onde saiu a tal música caipira. Já defendi a tese de que por muito tempo nossos violeiros foram “jornalistas do sertão”, ponteando em suas violinhas, as histórias e causos da nossa gente. Então, por módi de que eu ia querer escrever sobre qualquer outra coisa – ou sobre qualquer outro estilo de música “importado”, se eu posso falar de uma coisa nossa, legítima?

O violeiro Yassir Chediak já disse que a viola brasileira tem cheiros e cores. Não entendo nada de música. Apenas gosto. E cada vez que escrevo sobre uma moda, escrevo justamente sobre cheiros, cores... E gente. Escrevo sobre até sobre você, que nem gosta de música caipira.

É só uma questão de deixar o tal "pré conceito" de lado. Quer ver só uma coisa: você certamente já ouviu Beethoven (ou pelo menos ouviu falar dele). Conhecido por suas belíssimas obras, poucos sabem que o alemão Ludwig van Beethoven já foi considerado um “artista do povo”, que gostava tanto de música rural, que compôs dúzias de contradanças inspiradas na vida interiorana.

Ayton Mugnaini Jr., na Enciclopédia das Músicas Sertanejas, garante: “se ainda houver alguma dúvida sobre Beethoven ter algo a ver com música “caipira”, basta lembrar o sucesso de Osvaldinho do Acordeon com sua adaptação da Quinta Sinfonia, que denominou "Sanfonia de Betovem" (que está em seu LP Forró in Concert, de 1981).

É por isso que escrevo sobre música caipira meu amigo... E se você parar para sentir (não só “ouvir”) as letras dos nossos caipiras, vai entender o que o maior violeiro do Brasil, Renato Andrade
, definia como música: "uma música bem tocada faz você sentir saudade de uma coisa que você não sabe o que é".


***Na imagem acima, de Tarsíla do Amaral, o quadro Operários, pintado em 1933

13 novembro 2006

Jardim da Fantasia

Paulinho Pedra Azul

Bem te vi, bem te vi
Andar por um jardim em flor
Chamando os bichos de amor
Tua boca pingava mel

Bem te quis, bem te quis
E ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
Bem maior que o sol

Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez
Me beije só mais uma vez
Depois volte prá lá.

08 novembro 2006

Respeitável público


Quanta alegria. Foi armado o circo!
Está em festa o largo da matriz
Em volta dele corre a meninada
E eu brincando junto também sou feliz

Acho que todo mundo já pensou em fugir com o circo um dia. Todo mundo. Mesmo que por alguns segundos. Rapidinho, ali na arquibancada enquanto observava o trapezista. Tudo bem, tem quem não gosta de circo. Eu mesmo tenho uma amiga que tem “pânico” de palhaço... Mas que é um mundo incrível, ah isso é.

Eu amo circo! E quanto menor o circo, melhor o show. É sério! Esse negócio de circo famoso não tem graça... O legal é ver o cara que agora mesmo tava no trapézio, lá fora vendendo maça do amor. A moça que ajuda o palhaço, já, já aparecendo no número do equilibrista. E apresentador com sotaque espanhol (todo mundo tem sotaque no circo) é o mesmo que tira foto com o burrinho pintado de zebra do lado de fora... Isso sim é um espetáculo!

Só fui conhecer circo grande mesmo, do tipo “Beto Carreiro”, depois de adulta. É tudo lindo. Mas ainda prefiro a turma do “faz de tudo”.


Quando estava no ginásio ainda, de vez em quando entrava um ou dois alunos novos. Ficavam pouco tempo. No máximo três meses. Eram do circo. Tinham uma escola nova a cada parada. Aí um dia o circo foi embora - e uma menina ficou. Tinha fugido do circo. Acho que ela tinha uns 16 anos. Nunca esqueci o nome dela: Katiúcia (não era o nome artístico). Foi morar com um moço da escola. Casou, teve um filho. Nunca mais foi ao circo.

Eu ainda tenho vontade de fugir com o circo toda vez que vejo um. Mas claro, nunca tive coragem – e agora, com a correria de todo dia, menos ainda. Aí eu fico imaginando como ia ser. Só imaginando... E fico pensando na Katiúcia. E se ela só tivesse imaginado? Poderia ter dado tudo errado. Mas ela foi mesmo assim. Deve ser essa coisa do circo né? Esse pessoal não tem medo de nada – de buraco na estrada, de não ter público no show, do leão (quando tem um leão...), do trapézio, da falta de sorte... nada!

Já eu, que não cresci em circo, morro de medo de um monte de coisas... E morro de inveja da tal Katiúcia, que conheceu os dois lados da história e pode escolher com qual queria ficar. Já tem uns três anos que a vi pela última vez. Estava casada, três filhos e trabalhava meio período numa escolinha da cidade. Nunca se arrependeu. Ah! E agora ela vai ao circo – pra levar as crianças. Mas voltar para o picadeiro, nunca mais...

Em homenagem à Katiúcia, aí vai a letra de O menino e o circo, de Cascatinha e Inhana.

Minha cidade amanheceu risonha... Chegou o circo, está a anunciar
Grita o palhaço da perna de pau, minha gente acorda para ouvir cantar
E eu, menino, moleque de rua, vou bem na frente prá chamar atenção
Talvez me vendo assim animado, me dê entrada o dono da função

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua

Quanta alegria! Foi armado o circo e está em festa o largo da matriz
Em volta dele corre a meninada e eu brincando junto também sou feliz
"Zé Fogueteiro" hoje vai ao circo, todo exibido veio me contar
Prá queimar fogos já ganhou bilhete e no camarote diz que vai sentar

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço que está na rua

Para juntar dinheiro eu vou depressa vender cocadas que a doceira fez
Vou lavar vidros, vou vender garrafa ou engraxar sapatos prá qualquer freguês
E se de noite, prá meu desengano eu não puder sentar na arquibancada
Eu, de "gaiato" vou "forçando" entrada bem escondido por baixo do pano

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua...

29 outubro 2006

A visita do vagalume

Há quem duvide, mas acredite: correr atrás de vaga-lume é muito divertido. Pelo menos quando a gente era criança... Aí essa madrugada eu, que nem lembrava mais que existia vaga-lume, topei com um bem na minha sacada.

Dizem os antigos que encontrar vaga-lume é sinal de “bom presságio”. E matar um bichinho desse é o mesmo que espantar a felicidade de casa. Na fazenda, já escutei os peões contarem que se guardasse um vaga-lume dentro de um vidro no dia seguinte ele se transformaria em uma moeda de ouro – e claro, a gente nunca tem um vidro por perto quando precisa...

Depois da rápida visita o danado do vaga-lume foi embora. E eu ainda fiquei bastante tempo acordada lembrando que quando criança, morria de curiosidade: da onde vem a luz do vaga-lume? Aí eu cresci e como todo adulto perdi a curiosidade. Bom, aí vai a explicação científica: a luz dos vaga-lumes chama "bioluminescência". A grosso modo isso significa o seguinte: a luz é uma reação química originada no organismo. Quer saber uma coisa que quase ninguém sabe? A “lanterna” do vaga-lume é essencialmente um dispositivo de namoro...

Agora olha como é bom ser criança: as histórias são muito mais interessantes... Quer saber a que ouvia? Então escuta: o vaga-lume, que não era vaga-lume ainda, apaixonou-se por uma estrela. Gostou tanto, tanto dela, que desesperado, pediu – a qualquer um que o ouvisse: “me faz pelo menos parecido com ela”. No dia seguinte, era um vaga-lume. A gente nunca perguntou se ele e a tal estrela ficaram juntos. Já sabíamos o que nos interessava – porque o vaga-lume brilhava...

O fato é que o vaga-lume veio pela sacada, entrou na sala, espiou e foi embora. Nem deu tempo de correr atrás. Depois que ele foi embora corri na estante e achei uma música de Luiz Carlos Garcia e Zezety: Escolta de Vaga-lumes. O vaga-lume não voltou mais. Mas me ajudou a lembrar como era gostoso ser criança...


Voltando pra minha terra eu renasci
Nos anos que fiquei distante acho que morri...
(...) Eu voltei e ao passar na porteira senti o perfume
Eu fui escoltado pelos vagalumes, pois era uma linda noite de luar

22 outubro 2006

Olhos Profudos


Composição: Renato Teixeira

Feito um menino que permite ao coração
Sair correndo sem destino ou direção
Que vire vento e sopre feito um furacão
Que nesse fogo por amor eu ponho a mão
E até permito as cantorias da paixão

O velho barco toda vez que vê o mar
Fica confuso, com vontade de zarpar
E ver o mar às vezes bem que é preciso
Pra ter certeza de ainda estar-se vivo
Mesmo que o casco esteja velho e corroído

Como uma estrada que vai dar não sei aonde
Por meu destino o coração é quem responde
Braços abertos pra se ver a luz do peito
Com grande amor que seja puro amor refeito
Olhos profundos não me olhem desse jeito...

21 outubro 2006

Tio Pedro e a Maria Louca
























Quando eu era criança, morava em Caçú, interior de Goiás. Tinha 7, 8 anos, quando conheci o Tio Pedro e a Maria Louca. Como toda cidade pequena, Caçú tinha seus “personagens folclóricos”, e essa dupla era famosa, principalmente entre as crianças.

O tio Pedro já era um senhor de idade, maltratado pela vida e muito mal humorado. Algumas crianças tinham medo dele. Já eu, que tive a sorte de ter em casa dois educadores de peso, gostava do tio Pedro... Ele morava de favor em várias casas, era meio andarilho. De vez em quando sumia, voltava de novo. Uma vez apanhei na escola porque briguei com um menino que estava jogando pedras nele. Nunca contei isso pra minha mãe. Bom, agora ela sabe... Nunca mais tive notícias do tio Pedro que hoje já não deve estar mais por aqui.

E a Maria Louca? Bom, como o próprio apelido sugere, ela também dava um pouco de trabalho. Andava pela cidade vestindo uma peça de roupa em cima da outra, com sacos pendurados nas costas, gritando com a molecada, xingando um ou outro... Quando a gente não queria dormir os mais velhos ameaçavam: “vou chamar a Maria Louca, a Mulher do Saco...”.

Mas isso já faz muito tempo. Essas duas figuras que marcaram minha infância, provavelmente já foram para um lugar bem melhor. Não conheço a história deles. Sei apenas que eles ajudaram a construir um pedacinho da minha.

Na semana passada finalmente concretizei uma vontade antiga: fui para São Paulo para "conhecer" São Paulo. Fiz um mapa dos lugares que queria ver de perto e a cada parada, eu não sabia se me impressionava com a beleza dos lugares ou a quantidade de marias loucas e pedros que eu encontrava no caminho. Exatamente iguais.

Um dos lugares que mais me impressionou foi a Igreja da Sé. A igreja estava praticamente vazia, mas na escadaria, enquanto subíamos aqueles degraus que pareciam não ter fim, quanta gente meu Deus! Deitados, sentados, alguns dormindo enrolados em cobertores. Todos do lado de “fora” da igreja.

Em nosso último dia na cidade, encontramos um casal de violeiros tocando e cantando na praça da Pinacoteca. Velhinhos já. Fiquei ali, assuntando. No meio da cantoria, o violeiro parou, olhou pra gente e soltou essa: “to aqui cantando, mas to vendo tudo!”. E voltou a cantar...

E eu? Eu voltei pra casa pensando, até quando vamos conseguir ir levando a vidinha da gente e não fazer nada? Semana que vem tem eleição – e detesto discutir política, mas vá lá... É fácil demais apertar dois números na urna e pronto. Mas e depois, como é que fica? A gente volta pra casa, continua não fazendo nada e espera por mais quatro anos, torcendo pra desta vez dar certo?

E depois dizem que o Tio Pedro e a Maria Louca é que eram estranhos... Pior somos você e eu. Dois malucos de verdade!

Coisas para 2013

Eu já vi disco voador. Vi uai, fazer o quê... Tem gente que acredita, tem gente que acha que é brincadeira. Já contei tanto essa história que até eu duvido dela de vez em quando...

Lembrei disso hoje depois que um amigo me contou impressionado sobre os “raios cósmicos” que atingiram a Terra na última terça-feira. Segundo ele (e Nostramus, que ao que tudo indica previu os tais raios), no dia 17 de outubro, graças aos raios cósmicos, qualquer um poderia realizar algum desejo – desde que o fizesse às cinco e dez da tarde, impreterivelmente.

Incrível essa necessidade que a gente tem. Sempre precisa de algo “sobrenatural” pra ter coragem de fazer alguma coisa. E não é de hoje! A gente apela pra tudo nessas horas: santo, simpatia, “raios cósmicos”.

Penso em tudo o que tenho vontade de fazer já, agora. Mas fico esperando a hora certa, esperando dar coragem, esperando o melhor momento, esperando pelos outros, esperando, esperando, esperando... E não faço nada – mesmo quando tudo está exatamente ao contrário do que eu queria. E pra ajudar fiquei sabendo dos raios cósmicos atrasada então, nem com essa ajudinha pude contar... =)

Agora vou ter que esperar até 2013 – anote aí, é quando teremos outra tempestade de raios cósmicos – pra fazer um monte de coisas. É verdade, ainda tem a segunda opção: parar de esperar. Mas isso já é mais complicado. Acho que ainda é mais fácil fazer o pessoal acreditar nas histórias do disco voador...

Em homenagem aos “raios cósmicos” do meu amigo editor, aí vai a letra de Disco Voador, composição de Palmeira, da dupla caipira Palmeira e Biá. Hoje seus discos são caçados nos sebos como se fossem ouro – a dupla é considerada uma das “mães” da música caipira. A letra, assim como o homem do interior, é simples, mas cheia de sabedoria. Espia!

Tomara que seja verdade
Que exista mesmo disco voador
Que seja um povo inteligente
Pra trazer pra gente a paz e o amor
Se for pro bem da humanidade
Que felicidade essa intervenção
Aqui na terra só se pensa em guerra
Matar o vizinho é nossa intenção

Se deus que é todo poderoso
Fez esse colosso suspenso no ar
Por que não pôde ter criado
Um mundo apartado da terra e do mar
Tem gente que não acredita
E acha que é fita os mistérios profundos
Quem tem um filho pode ter dois filhos
O senhor também pode ter outros mundos

Os homens do nosso planeta dão a impressão
De que não têm mais crença
Em vez de fabricar remédio
Pra curar o tédio e outras doenças
Inventam bomba de hidrogênio
Usam o seu gênio fabricando bomba
Mas não se esqueçam que por mais que cresçam
Que perante Deus qualquer gigante tomba

O nosso mundo é o espelho
Que reflete sempre a realidade
Quem forma vinha colhe uva
E quem planta chuva colhe tempestade
No tempo em que jesus vivia
Ele disse um dia e não foi a esmo
Que nesse mundo que a maldade infesta
Tudo o que não presta morre por si mesmo


PS: Disco voador? Não, a foto aí em cima é um “bolachão”, um disco da dupla
Palmeira e Biá, da RCA Candem, de 1966.

19 outubro 2006

Fim de ano e fim do mundo

...e a transformação da face do mundo é como a transformação da cara da gente, que muda tanto durante toda a vida – mas que, dia a dia, de ontem para hoje, de hoje para amanhã, sempre nos parece a mesma cara no espelho. (Mário Quintana)

Dá uma olhada aí no seu calendário. Olhou? Viu mesmo?
É isso aí, faltam menos de dois meses para o natal. dois meses! Vou te falar uma coisa, eu não sei de você, mas eu não vi o ano passar. Neste exato momento, estou aqui tentando lembrar o que é que eu fiz, o que ocupou tanto meu tempo que fez 2006 simplesmente... passar.

Aí lembrei de Hemingway. Ele não era caipira – nem brasileiro – mas foi um grande escritor. Acho que foi ele quem disse que devemos olhar as coisas como se fosse pela última vez – ou primeira? Não importa, o importante é o olhar. Foi isso que aconteceu com meu ano: eu não olhei prá ele.

To falando de olhar mesmo, ver, perceber. Todos os dias a gente acaba fazendo quase tudo igual – como na música de Chico Buarque – e o que vemos todo dia vira, sei lá... nada? Quer um exemplo: você faz todo dia o mesmo caminho para o trabalho. De tanto ver o mesmo caminho, chega uma hora que não vê mais. Agora imagina quanta coisa eu não vi esse ano!

E sabe aquele moço que todo dia você encontra no caminho para o trabalho? Se a partir de amanhã ele não cruzar mais o seu caminho, você não vai poder dizer que realmente via ele todos os dias. Você nunca perguntou o nome dele, onde mora, o que faz... Não viu nada disso. E agora, não vai ver mesmo... E aí outro ano vai passar e você vai fazer como eu – vai ficar repetindo essa frase batida de fim de ano: “o ano passou e eu nem vi”.

Falando de fim de ano, lembrei de uma música do Rolando Boldrin, um dos meus compositores preferidos: a moda do fim do mundo, uma versão engraçada do que dois compadres fariam com o pouquinho de tempo que sobraria nessa hora. A letra é uma parceria do Boldrim com Tom Zé e Svaniek (prá provar que “intelectuais” - ou os que se acham intelectuais - também gostam de música caipira!).


A Moda do Fim do Mundo

Cumpadi em Brasília, espaiaram
Um boato muito chato
Que o mundo vai se acabar

Vancê fique de oreia no rádio
Vancê fique de oio no jorná
Porque, vou te contar,
No dia que o mundo se acabá
Nesse dia a gente tem que resolver
Que nós temo que esconder
Aquele galo bolinha
Prá dispois do fim do mundo a gente ter
Um macho prás galinha,

Cumpadi também temo que esconder
Aquele touro garanhão,
Grandão e arruaceiro
Prá dispois no fim do mundo a gente ter
O bicho que sabe fazer bezerro,

Vancê fique de oreia no rádio...

Cumpadi pense bem no dia “d”
Que porva vai garrá fedê
E tudo nóis vira mingau
Prá dispois do fim do mundo a gente ter
Um casal do bicho que faz miau,

Cumpadi também temo que alembrar
E a sete chave nós guardar
O cachorro e a cachorra
Prá dispois do fim do mundo a gente ter
Que evitar que a raça morra

Vancê fique de oreia no rádio...

Cumpadi acabei de me alembrar,
Que o jegue irará
Também temo que esconder
Prá dispois do fim do mundo a jega ter
Um jegue prá lhe comer

Cumpadi sabe que na afobação
A gente quase se esqueceu
De guardar uma comadre
Prá dispois do fim do mundo a gente ter
Um pecadinho prá confessar com o padre

01 outubro 2006

Viola Quebrada

Me fizeram uma cobrança séria essa semana: onde está a letra de Viola Quebrada que dá nome ao blog? Para quem não conhece, aí vai um pedacinho de Mário de Andrade, um dos maiores poetas que o Brasil já conheceu.

Quando da brisa no açoite a flor da noite se acurvou

Fui encontra com a Maróca meu amor
Eu senti n'alma um golpe duro
Quando ao muro já no escuro
Meu olhar andou buscando a cara dela e não achou

Minha viola gemeu
Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Meu coração me deixou

Minha Maróca resolveu prá gosto seu me abandonar
Porque o fadista nunca sabe trabalhar
Isto é besteira pois da flor
Que brilha e cheira a noite inteira
Vem de´pois a fruta que dá gosto de saborear

Minha viola gemeu
Meu coração estremeceu
Minha viola quebrou
Meu coração me deixou

Por causa dela sou um rapaz muito capaz de trabalhar
E todos os dias todas as noites capinar
Eu sei carpir porque minh'alma está arada e loteada
Capinada com as foiçadas desta luz do seu olhar...


***Na foto, o quadro O Violeiro, de Almeida Júnior. A tela, pintada em 1899, está exposta na Pinacoteca de São Paulo

30 setembro 2006

Pingos

“Hoje vai chover”. Ainda não eram nem 8 horas, o sol já estava alto, mas eu sabia! Ia chover!

Estava esperando essa chuva desde que começou a primavera. São as melhores chuvas do ano: o clima está ameno, a chuva não é tão gelada e a gente pode sentir de longe aquele cheiro de terra molhada... Eu sabia que hoje ia chover. E choveu mesmo!

Quando era criança, presenciei várias vezes os peões da fazenda e meu pai, esperando ansiosos por sinais de chuva no céu. Pra eles a chuva era sinal de boa colheita e gado gordo no pasto. Pra mim era mais uma oportunidade de brincar na chuva – mesmo sob os protestos da dona Maria, minha avó. (Mulher incrível! A única pessoa que conheci que consegue citar pelo menos 15 doenças diferentes em menos de 20 segundos – todas resultado da chuva, claro!).

Agora ninguém mais toma chuva. Pode olhar, todo mundo corre dos pingos. Alguns porque a chuva estraga a “chapinha”. Outros porque tem medo de ficar doentes – devem ter falado com minha avó – e há quem simplesmente não tem tempo. Confesso que eu também não tenho mais tempo.
Mas hoje, quando vi a chuva que eu esperei por meses, lembrei com carinho das chuvas do sítio...

Quem depende da terra para sobrevier em algum momento já chorou de emoção ao ver o céu prometendo chuva para a lavoura, para o pasto, para os animais. É o que João Pacífico (meu querido!) e Raul Torres contam na música Pinto D’Água.

Em 1944 uma seca terrível assolava o interior paulista. Em Barretos, João Pacífico se preparava para uma apresentação na cidade quando viu os fiéis rezando e fazendo promessas numa procissão para que a chuva viesse. A reza inspirou o poeta que escreveu Pingo D’Água, depois musicada por Raul Torres. A letra fala sobre uma promessa por chuva e a última estrofe encerra o poema resumindo toda a emoção do homem do interior: fui na capela e levei três pingos d' água: um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá.

Coincidência ou não, choveu dois dias depois do lançamento de Pingo D' Água. Uns dizem que foi milagre, outros que foi coincidência. Mas choveu. E ninguém correu prá casa na hora que os pingos começaram a cair.

Em Goiás, durante o período de inverno, a falta de chuvas deixa a paisagem seca e amarelada. Mas aí, quando as chuvas chegam com a primavera, os pastos ficam coloridos: amarelo, branco, roxo. São os ipês, que transformam tudo em um jardim aberto. Mesmo com o mais frio e seco o inverno, aos primeiros sinais de chuva os ipês se enchem de flores.

Hoje, longe do cerrado goiano e dos pés de ipê, me contento com as cores do céu que parece receber pinceladas em dias assim, de chuva: azul, cinza, amarelo, púrpura... Como é que alguém pode correr prá casa sem olhar um céu assim?


Depois de um dia inteiro fechada respirando ar-condicionado, fiquei na dúvida quando a chuva caiu. Assim como Pacífico, não soube se os pingos d’água que molhavam meu rosto eram da chuva, ou do meu olhar...

Eu fiz promessa
prá que Deus mandasse chuva
Prá crescer a minha roça e vingar a criação
Pois veio a seca, e matou meu cafezal
Matou todo o meu arroz e secou meu argodão
Nesta colheita, meu carro ficou parado
Minha boiada carreira quase morre sem pastar
Eu fiz promessa, que o primeiro pingo d'água
Eu moiava a frô da santa, que tava em frente do altar
Eu esperei, uma sumana um mês inteiro
A roça tava tão seca dava pena a gente ver
Oiava o céu, cada nuvem que passava
Eu da santa me alembrava prá promessa não esquecer
Em pouco tempo, a roça ficou viçosa
A criação já pastava, floresceu meu cafezal
Fui na capela e levei três pingo d'água
Um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá

Pingo D'Água, Raul Torres e João Pacífico, 1944


Assista aqui, João Pacífico e Adauto Santos interpretando "Pingo D'Água" no programa Viola Minha Viola. exibido pela TV Cultura, em abril de 1992

12 setembro 2006

Aquilo que não se ensina

Lembra quando você prestou vestibular?

Se não viveu isso ainda, certamente conhece alguém que passou madrugadas sem dormir estudando como louco, mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida. Mas chega a hora de decidir. E aí você decide e vai em frente...

Minha primeira “profissão” foi arqueologia. Depois cientista, veterinária, professora, artista de circo, missionária, médica... É sério, já quis ser tudo isso. Mas quando chegou a hora, optei pelo jornalismo. Na verdade queria ser contadora de histórias e o jornalismo era o que mais chegava perto disso. Alguém já disse que “embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem”. Acreditando nisso, continuo escrevendo. E mesmo amando o que faço, ainda me pergunto como teria sido a vida no circo...

Meu irmão caçula – hoje maior que eu em tamanho e maturidade – vai prestar vestibular. Somos muito parecidos. E assim como eu, ele já "escolheu” dezenas de profissões. Ele tem apenas 18 anos. E eu pergunto: quem é que sabe o que quer da vida aos 18 anos? Se eu fosse prestar vestibular hoje, provavelmente sairia do cursinho, compraria uma barraca e iria morar na praia. Uma idéia um pouco romântica, é verdade. Mas ainda assim poderia continuar contando histórias...

Gosto de muitos escritores. Mas “paixão” mesmo, tenho por poucos. Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretãs é uma dessas. Talvez você não a conheça por esse nome. Foi como Cora Coralina que essa goiana, uma autêntica contadora de histórias, ficou famosa. Cora só começou a escrever aos 14 anos, após completar apenas dois anos de escola primária – única escola que fez. Escreveu a vida toda, mas não foram seus poemas e dezenas histórias que me encantaram. Foi sua paixão pelo que fazia.

Cora escrevia sobre qualquer papel que lhe caísse às mãos: bordas de jornais, envelopes de cartas, cartões postais, papéis de embrulhar pão. Se tivesse tempo, passava a limpo. Caso contrário, ficavam por ali, esquecidos. Não escrevia para os outros. Escrevia apenas por paixão.
Hoje, enquanto meu irmão fazia sua inscrição para um dos muitos vestibulares que fará até o final do ano, fiquei pensando se ainda sou uma “contadora de histórias” ou se finalmente virei apenas jornalista. E mais uma vez me lembrei de Cora Coralina: faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

Cora morreu aos 96 anos em 1985. Lançou sete livros, o primeiro deles aos 75 anos. Meu irmão tem apenas 18 e muitos “poemas” para fazer. Num deles vai encontrar aquilo que faz tanta falta aos jovens de hoje. Paixão. Isso, faculdade nenhuma ensina...

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso aos que têm sede.

*Aninha e suas pedras, de Cora Coralina (na foto) em outubro de 1981

11 setembro 2006

Você sabe fazer sabão?

"Vocês sabiam que o sabão é feito de gordura? Mas se é feito de gordura, como pode limpar?”

Já faz tempo... Eu estava me preparando para o vestibular quando meu professor de química veio com essa. Taí, nunca tinha pensado nisso. E foi tentando entender química que me lembrei do tacho de sabão fervendo no meio do terreiro da fazenda. Minha avó começava cedo, juntando a banha, a soda... Lembro-me das recomendações para não mexer na soda – porque “machucava” – e para nunca chegar perto do tacho de sabão.

A gente ia brincar e de vez em quando passava ali perto, dava uma espiada e ia embora. No final da tarde, o fogo já tinha virado cinza e aquele monte de banha tinha virado sabão. No dia seguinte minha avó “desenformava” aquilo tudo e cortava os pedaços de sabão que distribuía para toda família.

“Vocês sabiam que o sabão é feito de gordura?”. É, eu sabia sim.

Quando entra em contato com a sujeira, a gordura gruda nas partículas sujas e "desprende" a sujeira. A soda "suspende" os resíduos e o resto do serviço fica por conta da água, que leva tudo embora.
Complicado? Parece, mas não é não... Aliás, tudo que é complicado demais, na verdade é mais simples do que parece. A gente é que em mania de complicar tudo.

Vamos filosofar... Se a vida fosse um tacho (daqueles bem grandes mesmo), dava prá ir colocando lá dentro cada problema, decepção, raiva... Um monte de gordura que depois, bem lá na frente, viraria alguma coisa útil. Problemas não marcam hora prá entrar na vida da gente. Mas agora tá fácil! Antes de reclamar, misture tudo no tacho. Faça “sabão”. Sem querer fazer trocadilho, você vai se sentir de alma lavada.

Ah! E se sobrar um tempinho, pegue todo esse sabão e arrume um canudo. Lembra como era gostoso? Orlan Divo e Adilson Azevedo lembram e registraram prá ninguém mais esquecer na música Bolinhas de Sabão, de 1963.

Sentado na calçada de canudo e canequinha
Eu vi um garotinho fazer uma bolinha
Bolinha de sabão...
Eu fiquei a olhar e pedi para ver quando ele me chamou
E pediu pra com ele brincar
Foi então que eu vi como era bom brincar com bolinha de sabão
Ser criança é bom...
Agora vou passar a fazer bolinha de ilusão

08 setembro 2006

Varanda não é alpendre

“To com saudade de sentar no alpendre lá de casa...”

E estava mesmo. Há muito tempo não fazia isso. Mas nem deu prá terminar a frase. Verinha, a amiga que estava comigo na hora, ficou me olhando com cara de espanto, esperando eu explicar o que era “alpendre”. Sou paulista, mas morei muitos anos em Goiás e Mato Grosso do Sul. Me tornei goiana e sul matogrossense de coração. E desde que voltei para o Estado de São Paulo, já adulta e acostumada às expressões dos dois Estados que adotei, tive que me habituar a explicar algumas delas.

“Você não sabe o que é alpendre?”
“Não!”
“Alpendre? Que fica na frente da casa?”
“Ah... A varanda?”

Não, não é varanda. Quando fui procurar um apartamento para alugar pela primeira vez, percebi que todos os corretores faziam questão de salientar: “Esse imóvel é ótimo viu? Três quartos, fica no 11º andar e o melhor, tem varanda!” Estou aqui escrevendo e olhando pela “varanda” do meu apartamento. Quase todos os outros prédios à minha volta também têm “varandas”. Agora finalmente descobri porque a tal “varanda” é tão importante no prédio. Porque aqui todo mundo acha que varanda e alpendre são a mesma coisa. Não são.

“Claro que é... É tudo a mesma coisa”, insistiu a Verinha. Claro que não é! E não sou eu que estou falando isso não, é o Aurélio! “Varanda: balcão, sacada, terraço”. “Alpendre: espaço coberto e aberto na fachada de uma casa, que dá acesso ao interior”. Mas a diferença não acaba ai. É simples de entender: quem é que vai ficar na varanda do 11º andar de um prédio olhando alguém passar?

Quando era criança adorava ficar no alpendre brincando de casinha. Sempre passava uma ou outra menina da rua, via a brincadeira e parava para brincar também. Depois fiquei mocinha e o alpendre ficou ainda mais interessante. Minhas amigas e eu passávamos as tardes de domingo sentadas no alpendre conversando. Ou fingindo que conversávamos enquanto esperávamos passar “alguém”interessante na rua. E hoje, quando visito meus pais, o mesmo alpendre é o lugar onde colocamos a conversa em dia, enquanto os vizinhos vão chegando prá esticar e participar da conversa também.

Conhecíamos todos os alpendres da cidade. Tinha alpendre tão grande que as festas aconteciam nele. Só nele. Não precisam nem entrar na casa. Imagine agora dar uma festinha aí na “varanda” do seu apartamento... “Ah, entendi! Alpendre é coisa de velho!”, concluiu minha amiga. Deve ser mesmo. Parece que isso tudo aconteceu há tanto tempo. Mas nossa, como era bom!

Se você sentar na “varanda” do seu apartamento, talvez veja um passarinho voando ali por perto. Talvez veja a “varanda” do prédio da frente. Mas se você tivesse um “alpendre” ao invés de uma “varanda”, provavelmente conheceria melhor seu vizinho. Talvez receberia mais visitas. Ou simplesmente teria prazer de sentar lá no finalzinho da tarde só para ler um livro, tomar uma cervejinha ou simplesmente ficar olhando o movimento.


Meus pais tem em casa tudo o que a tecnologia oferece hoje – televisão, canal a cabo, DVD, internet... Mas todo dia sentam juntos no “alpendre” para conversar. Eles sabem o que é um alpendre. São casados há quase 30 anos. E nunca moraram em apartamento com varanda.

Prá explicar melhor isso tudo, aí vai mais uma do João Pacífico (essa em parceria com Edmundo Souto), que sabe melhor que ninguém falar dessas coisas da nossa gente...

Alpendre da saudade

Às vezes fico no alpendre da fazenda
Contemplando a vivenda onde eu era tão feliz
E bem na frente um barranco ao pé da estrada
Foi passagem de boiada tão pisado
O chão me diz: por quê? Por que você mudou?
Por que se afastou de mim?
Eu sou apenas uma estrada não sou mais pisada
E tão abandonada, enfim eu sou apenas uma estrada
Não sou mais pisada e tão abandonada, enfim
De que me adianta esse alpendre da fazenda
Que eu troquei pela vivenda por ser tão cheia de pó
Mas era um pó cheio de felicidade, hoje é pó da saudade
Aqui eu chorando, aqui tão só
Eu sei, eu sei qual a razão
Pois o meu coração me diz
Mas quando eu pego na viola
Ela me consola, ela é que me faz feliz

07 setembro 2006

Em terra de cego...

Saber contar uma boa história é o mínimo que se pede na minha profissão. Mas às vezes, a história é tão boa, que eu nem sei por onde começar... Essa por exemplo, que você vai ler aí em baixo, é ótima. Tanto que nem parece ser verdade. Mas é, juro! Aconteceu mesmo e quem lembrou desse “causo” foi meu pai (aí na foto), que garantiu: é verdade mesmo! Vamos fazer assim, eu conto o que aconteceu e você tira suas conclusões.

Na década de 80 morávamos em Caçu, interior de Goiás. Lá pelos idos das campanhas políticas de 1989, tínhamos um vizinho sitiante chamado Manoel Barroso. Como todo homem do campo, era conhecido por gostar de tomar uma branquinha. Mas o que chamava a atenção mesmo no seo Barroso é que ele tinha um olho de vidro. Passei boa parte da infância tentando descobrir qual dos olhos era "de mentirinha"...

Durante a campanha do município vizinho ao da nossa fazenda, após um comício de um sobrinho seu, o seo Barroso sentiu aquela vontade de tomar uma cervejinha. Apesar do dinheiro ter acabado, nosso vizinho não se deu por vencido! Seguiu com sua camionete para o boteco mais próximo e não demorou muito para encontrar um desconhecido tomando a dita cuja cerveja que ele tanto queria...

Seo Barroso encostou no balcão e ficou fazendo fita por algum tempo. De repente, começou a “morder o ar”. Imagine a cena! É claro que chamou a atenção do rapaz que tomava sossegado sua cerveja... Sem pestanejar desafiou: “quer apostar uma cerveja comigo que eu sou capaz de morder meu olho direito?”. Não é todo dia que você escuta uma proposta dessa né? E aí, dúvida daqui, briga dali, a aposta foi feita! Mais que depressa o velhaco do Barroso tirou o olho de vidro e tascou-lhe uma dentada! A cara do sujeito que perdeu a aposta foi a mesma que você deve estar fazendo agora...

Mas a história não parou por aí não! Seo Barroso – que estava com muita sede naquela noite – propôs um novo desafio: “quer apostar outra cerveja que eu mordo meu outro olho?". O desconhecido matutou: “cego dos dois olhos este danado não é! Chegou aqui guiando esta caminhonete velha...”. A curiosidade venceu e seo Barroso garantiu mais uma cerveja! Sem pensar duas vezes, meteu as mãos na boca, tirou a dentadura e crau! Com jeito de quem já tinha feito aquilo muitas vezes antes, “mordeu” o olho esquerdo.

Seo Barroso conta que nunca tomou duas cervejas tão gostosas como naquela noite... E ainda me deu de presente esse causo que de tanto passar prá frente, já virou meio folclore. Mas é verdade, garanto! Quer apostar?

Fiozinho d'água

Um fiozinho d' água desviou de um riacho
Veio vindo serra abaixo e passou no meu pomar
Encontrou uma pedra ficou sua companheira
Brincaram de cachoeira e aqui ficaram pra morar.
E hoje da janela eu contemplo a cachoeirinha
Que ficou minha vizinha desde que a vi nascer
Seu murmúrio doce é um verdadeiro canto
É quem me serve de acalanto para eu adormecer

João Pacífico escreveu o poema acima em 1991. Em 1998, fez questão de recitá-lo em um almoço com amigos, no dia 28 de dezembro, dois dias antes de morrer, aos 89 anos. Viu durante seus 89 anos o mundo que ele conhecia mudar de cara dezenas de vezes. No entanto conseguiu manter cristalina sua pureza, sua “paciência” que acabou lhe rendendo o apelido de Pacífico. Como um fio d’água ele viveu e desviou riachos, curvas e pedras para chegar ao seu destino.
Um fiozinho d' água desviou de um riacho...
Passei boa parte da minha infância na fazenda. Nesta época meu pai tinha o costume de sentar ao meu lado depois do jantar. No alpendre (é assim que os goianos chamam a varanda da frente da casa) ou no meio do terreiro, a gente ficava conversando, falando um pouco de tudo.
Sem energia elétrica na fazenda (portanto sem televisão), tínhamos tempo de sobra para conversar sobre o que quiséssemos. Foi sem dúvida um dos melhores anos da minha vida. Só que aí eu cresci.
Mudamos para a cidade e nossas conversas ficaram cada vez mais curtas. Hoje, longe de casa, sinto saudade da falta de luz elétrica que me permitia ver todas as estrelas no céu. Sinto falta da brisa fresca que tomava conta de toda a sede da fazenda durante a noite. Do cheiro do mato, de café torrado, do leite no curral... Mas sinto saudade mesmo é do tempo...
Hoje quando a saudade aperta me sinto como o fiozinho d’água de João Pacífico, desviando dos riachos. Em momentos assim fecho o olho e consigo até sentir o cheiro do mato. Dói um pouco, mas também ajuda a continuar procurando o caminho do mar...

Me dá licença estou chegando lá do mato
Moro longe desse asfalto
Atrás da serra é o meu rincão
Lá onde eu moro
Não existe luz na rua
Moro onde nasce a lua
Que tem nome de sertão
E não reparem na minha simplicidade
A grande felicidade
Foi nascer neste lugar...


Trecho de Gostinho de Saudade de João Pacífico e Piraci

Se me chamam de caipira

Em 2005 a TV Cultura de São Paulo transmitiu o documentário Quem Tem Medo de Ser Caipira?. Achei engraçada a pergunta porque cresci na fazenda ouvindo meu pai falar de seu orgulho em ser caipira. Aos poucos fui associando a imagem de caipira a imagem do caipira que eu tinha em casa: um caboclo forte, trabalhador, de coração mole e apaixonado pelo Brasil.
Cresci. E hoje sei que também sou caipira. Por isso quando vi o anúncio do documentário fiquei me perguntando como alguém poderia ter medo de ser caipira. Medo de ser aquilo que eu mais me orgulho.

O fato é que muita gente ainda confunde o que é ser caipira. Enxergam apenas aquele bicho do mato, idealizado por Monteiro Lobato, o matuto inocente e sujeito a gozações. Por certo quem ainda “tem medo de ser caipira”, precisa antes de mais nada estudar a fundo a história desse País feito, formado e sustentado por muitos caipiras.

A ignorância em relação à cultura caipira é tamanha que até mesmo nossos líderes já mostraram não conhecer seu povo. Em 1996, durante uma viagem diplomática a Lisboa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que o povo brasileiro “tinha mentalidade caipira, por rejeitar a globalização e a idéia de relacionar-se com o mundo”. É bom que fique claro a diferença: não estou falando do sertanejo, estou falando do caipira mesmo. Zé Mulato e Cassiano souberam como poucos explicar o que quero dizer. Nos versos de Navegante das Gerais, os dois cantam:

Se me chamam de caipira

Fico até agradecido
Pois falando sertanejo
Eu posso ser confundido
(...) Defendo nossas raízes

Por isso tenho brigado
Não escondo minha origem
Sou caipira liberado
Minha modinha é singela

Igual a flor do cerrado
Mas é sertão brasileiro
Tudo o que eu tenho cantado
Infelizmente o que vejo

É um bando de sertanejo
Com mania de importado

Os jornalistas Assis Ângelo e Mouzar Benedito também já apontaram em seus estudos as diferenças entre o caipira e o sertanejo. "A música caipira é feita pelo homem da roça, sem influência do country americano, sem instrumentação eletrônica, apenas com viola e violão. Já sertanejo está mais próximo do country e das guarânias paraguaias”.
Prá quem ainda não entendeu o que é ser caipira, é muito fácil descobrir. Basta deixar de lado o “medo de ser caipira” , pegar o “caminho da roça” e atender o convite que Tião Carreiro e Pardinho fizeram em 1968 em sua música Encantos da Natureza:

Tu que não tiveste a felicidade
deixa a cidade, vem conhecer
meu sertão querido, meu reino encantado
meu berço adorado que me viu nascer

venha o mais depressa, não fique pensando
estou te esperando para te mostrar

vou mostrar os lindos rios de águas claras
e as belezas raras do nosso luar


***Na imagem, o quadro de José Ferraz de Almeida Júnior, 1893, "O Caipira Picando Fumo", exposto em Pinacoteca de São Paulo

Franguinho na panela

Tenho o costume de deixar o rádio ligado enquanto escrevo. A música me ajuda a trabalhar melhor. Nem sempre estou prestando atenção no que está tocando, mas a melodia que invade o lugar parece invadir a mim também.

Às vezes, quando não decido o que quero escutar, deixo o rádio ligado em alguma estação. Hoje, enquanto me preparava para escrever, ouvi uma melodia conhecida, aumentei um pouco o volume e lá estava. As vozes que entoavam a canção não eram as mesmas que eu conhecia. Mas a música era a mesma que Moacyr dos Santos e Paraíso escreveram há muito tempo e que Craveiro e Craveirinho gravaram: Franguinho na Panela.

Por um instante a música me fez voltar a ser criança. Quem nasceu onde a terra é mais vermelha, onde a gente acorda escutando passarinho e o céu fica colorido no fim do dia, vai entender o que quero dizer. A comida da roça para mim tem um gosto diferente, gosto de infância.

Cresci numa fazenda no interior de Goiás. Domingo era sinônimo de galinha caipira feita na panela de ferro e fogão a lenha. Com aquele “caldinho” gostoso que a gente misturava no arroz com feijão.
Em dia de festa o almoço saia da varanda e ia para baixo da sete-copas que ficava no quintal. A mesa era improvisada: algumas tábuas sustentadas por dois cavaletes. A gente sentava em volta, nos bancos improvisados também com algumas tábuas e tocos de madeira. Minhas primas vinham da cidade e a gente ficava ali, entre histórias e causos dos mais velhos, rindo das piadas que nem sempre a gente entendia, mas ria mesmo assim.

De vez em quando saia briga na hora de escolher o pedaço de frango na panela. Desde muito pequena, aprendi a brincar com aquele pedaço do frango que tem um osso em formato de "v". Acreditávamos seriamente que quem quebrasse o maior pedaço daquele osso tinha direito a um pedido. A esta altura já não me lembro quais eram os pedidos que eu fazia, mas me lembro da decepção quando perdia o direito de fazê-los.A letra da música que tocava no rádio é muito simples. Simples como foi minha infância. O que me encanta nela, entretanto, é a pureza utilizada para dizer como a vida pode ser intensa, simples e ao mesmo tempo encantadora.

Com pouco mais de seis ou sete anos, eu só precisava de um “franguinho na panela” prá me fazer feliz. E hoje, apenas a lembrança dele fez meu dia ficar muito melhor...

Compondo uma história



E no começo era o som, a melodia.
Aos poucos, lentamente, a música também passou a ser letra e poesia.
E com o passar dos anos a música transformou-se em interpretação, atitude, dança, emoção.
Não trabalho com música, sou jornalista. Mas, como já disse Marcelo Spalding Perez, “para falar de música não é preciso fazer faculdade, nem tocar algum instrumento. Em compensação podemos escrever como os poetas, que transformam tudo em versos”. Então, para falar de música nesta primeira postagem, escreverei com as mãos, o ouvido e o coração.
Gosto de citar trechos de músicas em meus textos porque o universo musical brasileiro é imenso, rico e maravilhosamente belo. A maioria das músicas tem a sabedoria genuína, intrínseca de um povo que nasceu junto à lida, afeiçoado ao trabalho. Gente que luta e batalha com garra e fé. Que reverencia com gratidão os pequenos grandes prazeres desta vida.
Os compositores Renato Teixeira e Almir Sater fazem parte deste universo e num dia de inspiração (típico das raízes brasileiras) compuseram:

Cada um de nós compõe a sua história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz


Com um site novinho em folha, “uma página em branco” pronta para ser escrita, Viola Quebrada é mais um desafio que começa com a competência de fazer, contar, de compor histórias. Ser capaz de transformar em frutos as sementes que são semeadas agora. Porque como já diz o sábio cancioneiro brasileiro, cada um carrega o dom de ser capaz...