30 novembro 2006

Se um dia vocês virem as folhas amarelas...

Se um dia vocês virem as folhas amarelas, não reparem, foi a saudade quem pintou...

João Pacífico

(Fotos de Costa Rica, Mato Grosso do Sul)
Viver é um descuido prosseguido... (João Guimarães Rosa)

Quando vai chegando a noite
A natureza desmaia
O sereno vem caindo
Na folha da samambaia
Eu vou na biquinha d'água
E tiro o suor do rosto
Esperando a comidinha
Temperada com bom gosto
Chamo a lua pra catinga
Ao som da modinha boa
E misturo a cantoria
Com os bichos da lagoa
Urutau canta doído
Sapo boi marca o compasso
Afinado com o bordão
Da viola nos meus braços
Noite alta vou dormir
Para acordar bem cedinho
Pois não perco a alvorada
E o cantar dos passarinhos
Pra me desejar bom dia
Coroar o meu sossego
Eu recebo a visita Do cuitelinho azulego

MEU CÉU (Xavantinho/ Zé Mulato)

O sertão está dentro da gente e em toda parte.
(João Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas)

Fiz meu rancho na beira do rio
Meu amor foi comigo morar
E na rede nas noites de frio
Meu benzinho me abraçava
Pra me agasalhar...
Mas agora, meu bem,
Vou-me embora,
Vou-me embora e não sei
Se vou voltar...
A saudade nas noites de frio
Em meu peito irá se aninhar
A saudade é dor pungente morena
A saudade mata a gente morena

A SAUDADE MATA A GENTE (João de Barro / Antônio Almeida)

20 novembro 2006

Cheiros e cores

Aí outro dia me perguntaram: “mas com tanta coisa prá escrever... Tinha que ser logo música caipira?”. Tinha uai... Eu gosto de música, ponto final. E amo música caipira. E gosto não se discute certo? Mas vamos discutir um pouquinho...

Desde que nossos amigos portugas apareceram por aqui, a música caipira tem sido representante daquilo que o Brasil tem de melhor e de mais puro. Misturou índios, negros, jesuítas, bandeirantes, tropeiros... Tudo no mesmo balaio, de onde saiu a tal música caipira. Já defendi a tese de que por muito tempo nossos violeiros foram “jornalistas do sertão”, ponteando em suas violinhas, as histórias e causos da nossa gente. Então, por módi de que eu ia querer escrever sobre qualquer outra coisa – ou sobre qualquer outro estilo de música “importado”, se eu posso falar de uma coisa nossa, legítima?

O violeiro Yassir Chediak já disse que a viola brasileira tem cheiros e cores. Não entendo nada de música. Apenas gosto. E cada vez que escrevo sobre uma moda, escrevo justamente sobre cheiros, cores... E gente. Escrevo sobre até sobre você, que nem gosta de música caipira.

É só uma questão de deixar o tal "pré conceito" de lado. Quer ver só uma coisa: você certamente já ouviu Beethoven (ou pelo menos ouviu falar dele). Conhecido por suas belíssimas obras, poucos sabem que o alemão Ludwig van Beethoven já foi considerado um “artista do povo”, que gostava tanto de música rural, que compôs dúzias de contradanças inspiradas na vida interiorana.

Ayton Mugnaini Jr., na Enciclopédia das Músicas Sertanejas, garante: “se ainda houver alguma dúvida sobre Beethoven ter algo a ver com música “caipira”, basta lembrar o sucesso de Osvaldinho do Acordeon com sua adaptação da Quinta Sinfonia, que denominou "Sanfonia de Betovem" (que está em seu LP Forró in Concert, de 1981).

É por isso que escrevo sobre música caipira meu amigo... E se você parar para sentir (não só “ouvir”) as letras dos nossos caipiras, vai entender o que o maior violeiro do Brasil, Renato Andrade
, definia como música: "uma música bem tocada faz você sentir saudade de uma coisa que você não sabe o que é".


***Na imagem acima, de Tarsíla do Amaral, o quadro Operários, pintado em 1933

13 novembro 2006

Jardim da Fantasia

Paulinho Pedra Azul

Bem te vi, bem te vi
Andar por um jardim em flor
Chamando os bichos de amor
Tua boca pingava mel

Bem te quis, bem te quis
E ainda quero muito mais
Maior que a imensidão da paz
Bem maior que o sol

Onde estás?
Nas nuvens ou na insensatez
Me beije só mais uma vez
Depois volte prá lá.

08 novembro 2006

Respeitável público


Quanta alegria. Foi armado o circo!
Está em festa o largo da matriz
Em volta dele corre a meninada
E eu brincando junto também sou feliz

Acho que todo mundo já pensou em fugir com o circo um dia. Todo mundo. Mesmo que por alguns segundos. Rapidinho, ali na arquibancada enquanto observava o trapezista. Tudo bem, tem quem não gosta de circo. Eu mesmo tenho uma amiga que tem “pânico” de palhaço... Mas que é um mundo incrível, ah isso é.

Eu amo circo! E quanto menor o circo, melhor o show. É sério! Esse negócio de circo famoso não tem graça... O legal é ver o cara que agora mesmo tava no trapézio, lá fora vendendo maça do amor. A moça que ajuda o palhaço, já, já aparecendo no número do equilibrista. E apresentador com sotaque espanhol (todo mundo tem sotaque no circo) é o mesmo que tira foto com o burrinho pintado de zebra do lado de fora... Isso sim é um espetáculo!

Só fui conhecer circo grande mesmo, do tipo “Beto Carreiro”, depois de adulta. É tudo lindo. Mas ainda prefiro a turma do “faz de tudo”.


Quando estava no ginásio ainda, de vez em quando entrava um ou dois alunos novos. Ficavam pouco tempo. No máximo três meses. Eram do circo. Tinham uma escola nova a cada parada. Aí um dia o circo foi embora - e uma menina ficou. Tinha fugido do circo. Acho que ela tinha uns 16 anos. Nunca esqueci o nome dela: Katiúcia (não era o nome artístico). Foi morar com um moço da escola. Casou, teve um filho. Nunca mais foi ao circo.

Eu ainda tenho vontade de fugir com o circo toda vez que vejo um. Mas claro, nunca tive coragem – e agora, com a correria de todo dia, menos ainda. Aí eu fico imaginando como ia ser. Só imaginando... E fico pensando na Katiúcia. E se ela só tivesse imaginado? Poderia ter dado tudo errado. Mas ela foi mesmo assim. Deve ser essa coisa do circo né? Esse pessoal não tem medo de nada – de buraco na estrada, de não ter público no show, do leão (quando tem um leão...), do trapézio, da falta de sorte... nada!

Já eu, que não cresci em circo, morro de medo de um monte de coisas... E morro de inveja da tal Katiúcia, que conheceu os dois lados da história e pode escolher com qual queria ficar. Já tem uns três anos que a vi pela última vez. Estava casada, três filhos e trabalhava meio período numa escolinha da cidade. Nunca se arrependeu. Ah! E agora ela vai ao circo – pra levar as crianças. Mas voltar para o picadeiro, nunca mais...

Em homenagem à Katiúcia, aí vai a letra de O menino e o circo, de Cascatinha e Inhana.

Minha cidade amanheceu risonha... Chegou o circo, está a anunciar
Grita o palhaço da perna de pau, minha gente acorda para ouvir cantar
E eu, menino, moleque de rua, vou bem na frente prá chamar atenção
Talvez me vendo assim animado, me dê entrada o dono da função

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua

Quanta alegria! Foi armado o circo e está em festa o largo da matriz
Em volta dele corre a meninada e eu brincando junto também sou feliz
"Zé Fogueteiro" hoje vai ao circo, todo exibido veio me contar
Prá queimar fogos já ganhou bilhete e no camarote diz que vai sentar

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço que está na rua

Para juntar dinheiro eu vou depressa vender cocadas que a doceira fez
Vou lavar vidros, vou vender garrafa ou engraxar sapatos prá qualquer freguês
E se de noite, prá meu desengano eu não puder sentar na arquibancada
Eu, de "gaiato" vou "forçando" entrada bem escondido por baixo do pano

Oh! Raia o sol, suspende a lua
Olha o palhaço no meio da rua...