30 setembro 2006

Pingos

“Hoje vai chover”. Ainda não eram nem 8 horas, o sol já estava alto, mas eu sabia! Ia chover!

Estava esperando essa chuva desde que começou a primavera. São as melhores chuvas do ano: o clima está ameno, a chuva não é tão gelada e a gente pode sentir de longe aquele cheiro de terra molhada... Eu sabia que hoje ia chover. E choveu mesmo!

Quando era criança, presenciei várias vezes os peões da fazenda e meu pai, esperando ansiosos por sinais de chuva no céu. Pra eles a chuva era sinal de boa colheita e gado gordo no pasto. Pra mim era mais uma oportunidade de brincar na chuva – mesmo sob os protestos da dona Maria, minha avó. (Mulher incrível! A única pessoa que conheci que consegue citar pelo menos 15 doenças diferentes em menos de 20 segundos – todas resultado da chuva, claro!).

Agora ninguém mais toma chuva. Pode olhar, todo mundo corre dos pingos. Alguns porque a chuva estraga a “chapinha”. Outros porque tem medo de ficar doentes – devem ter falado com minha avó – e há quem simplesmente não tem tempo. Confesso que eu também não tenho mais tempo.
Mas hoje, quando vi a chuva que eu esperei por meses, lembrei com carinho das chuvas do sítio...

Quem depende da terra para sobrevier em algum momento já chorou de emoção ao ver o céu prometendo chuva para a lavoura, para o pasto, para os animais. É o que João Pacífico (meu querido!) e Raul Torres contam na música Pinto D’Água.

Em 1944 uma seca terrível assolava o interior paulista. Em Barretos, João Pacífico se preparava para uma apresentação na cidade quando viu os fiéis rezando e fazendo promessas numa procissão para que a chuva viesse. A reza inspirou o poeta que escreveu Pingo D’Água, depois musicada por Raul Torres. A letra fala sobre uma promessa por chuva e a última estrofe encerra o poema resumindo toda a emoção do homem do interior: fui na capela e levei três pingos d' água: um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá.

Coincidência ou não, choveu dois dias depois do lançamento de Pingo D' Água. Uns dizem que foi milagre, outros que foi coincidência. Mas choveu. E ninguém correu prá casa na hora que os pingos começaram a cair.

Em Goiás, durante o período de inverno, a falta de chuvas deixa a paisagem seca e amarelada. Mas aí, quando as chuvas chegam com a primavera, os pastos ficam coloridos: amarelo, branco, roxo. São os ipês, que transformam tudo em um jardim aberto. Mesmo com o mais frio e seco o inverno, aos primeiros sinais de chuva os ipês se enchem de flores.

Hoje, longe do cerrado goiano e dos pés de ipê, me contento com as cores do céu que parece receber pinceladas em dias assim, de chuva: azul, cinza, amarelo, púrpura... Como é que alguém pode correr prá casa sem olhar um céu assim?


Depois de um dia inteiro fechada respirando ar-condicionado, fiquei na dúvida quando a chuva caiu. Assim como Pacífico, não soube se os pingos d’água que molhavam meu rosto eram da chuva, ou do meu olhar...

Eu fiz promessa
prá que Deus mandasse chuva
Prá crescer a minha roça e vingar a criação
Pois veio a seca, e matou meu cafezal
Matou todo o meu arroz e secou meu argodão
Nesta colheita, meu carro ficou parado
Minha boiada carreira quase morre sem pastar
Eu fiz promessa, que o primeiro pingo d'água
Eu moiava a frô da santa, que tava em frente do altar
Eu esperei, uma sumana um mês inteiro
A roça tava tão seca dava pena a gente ver
Oiava o céu, cada nuvem que passava
Eu da santa me alembrava prá promessa não esquecer
Em pouco tempo, a roça ficou viçosa
A criação já pastava, floresceu meu cafezal
Fui na capela e levei três pingo d'água
Um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá

Pingo D'Água, Raul Torres e João Pacífico, 1944


Assista aqui, João Pacífico e Adauto Santos interpretando "Pingo D'Água" no programa Viola Minha Viola. exibido pela TV Cultura, em abril de 1992

12 setembro 2006

Aquilo que não se ensina

Lembra quando você prestou vestibular?

Se não viveu isso ainda, certamente conhece alguém que passou madrugadas sem dormir estudando como louco, mesmo sem ter certeza do que gostaria de fazer da vida. Mas chega a hora de decidir. E aí você decide e vai em frente...

Minha primeira “profissão” foi arqueologia. Depois cientista, veterinária, professora, artista de circo, missionária, médica... É sério, já quis ser tudo isso. Mas quando chegou a hora, optei pelo jornalismo. Na verdade queria ser contadora de histórias e o jornalismo era o que mais chegava perto disso. Alguém já disse que “embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem”. Acreditando nisso, continuo escrevendo. E mesmo amando o que faço, ainda me pergunto como teria sido a vida no circo...

Meu irmão caçula – hoje maior que eu em tamanho e maturidade – vai prestar vestibular. Somos muito parecidos. E assim como eu, ele já "escolheu” dezenas de profissões. Ele tem apenas 18 anos. E eu pergunto: quem é que sabe o que quer da vida aos 18 anos? Se eu fosse prestar vestibular hoje, provavelmente sairia do cursinho, compraria uma barraca e iria morar na praia. Uma idéia um pouco romântica, é verdade. Mas ainda assim poderia continuar contando histórias...

Gosto de muitos escritores. Mas “paixão” mesmo, tenho por poucos. Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretãs é uma dessas. Talvez você não a conheça por esse nome. Foi como Cora Coralina que essa goiana, uma autêntica contadora de histórias, ficou famosa. Cora só começou a escrever aos 14 anos, após completar apenas dois anos de escola primária – única escola que fez. Escreveu a vida toda, mas não foram seus poemas e dezenas histórias que me encantaram. Foi sua paixão pelo que fazia.

Cora escrevia sobre qualquer papel que lhe caísse às mãos: bordas de jornais, envelopes de cartas, cartões postais, papéis de embrulhar pão. Se tivesse tempo, passava a limpo. Caso contrário, ficavam por ali, esquecidos. Não escrevia para os outros. Escrevia apenas por paixão.
Hoje, enquanto meu irmão fazia sua inscrição para um dos muitos vestibulares que fará até o final do ano, fiquei pensando se ainda sou uma “contadora de histórias” ou se finalmente virei apenas jornalista. E mais uma vez me lembrei de Cora Coralina: faz de tua vida mesquinha um poema. E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

Cora morreu aos 96 anos em 1985. Lançou sete livros, o primeiro deles aos 75 anos. Meu irmão tem apenas 18 e muitos “poemas” para fazer. Num deles vai encontrar aquilo que faz tanta falta aos jovens de hoje. Paixão. Isso, faculdade nenhuma ensina...

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso aos que têm sede.

*Aninha e suas pedras, de Cora Coralina (na foto) em outubro de 1981

11 setembro 2006

Você sabe fazer sabão?

"Vocês sabiam que o sabão é feito de gordura? Mas se é feito de gordura, como pode limpar?”

Já faz tempo... Eu estava me preparando para o vestibular quando meu professor de química veio com essa. Taí, nunca tinha pensado nisso. E foi tentando entender química que me lembrei do tacho de sabão fervendo no meio do terreiro da fazenda. Minha avó começava cedo, juntando a banha, a soda... Lembro-me das recomendações para não mexer na soda – porque “machucava” – e para nunca chegar perto do tacho de sabão.

A gente ia brincar e de vez em quando passava ali perto, dava uma espiada e ia embora. No final da tarde, o fogo já tinha virado cinza e aquele monte de banha tinha virado sabão. No dia seguinte minha avó “desenformava” aquilo tudo e cortava os pedaços de sabão que distribuía para toda família.

“Vocês sabiam que o sabão é feito de gordura?”. É, eu sabia sim.

Quando entra em contato com a sujeira, a gordura gruda nas partículas sujas e "desprende" a sujeira. A soda "suspende" os resíduos e o resto do serviço fica por conta da água, que leva tudo embora.
Complicado? Parece, mas não é não... Aliás, tudo que é complicado demais, na verdade é mais simples do que parece. A gente é que em mania de complicar tudo.

Vamos filosofar... Se a vida fosse um tacho (daqueles bem grandes mesmo), dava prá ir colocando lá dentro cada problema, decepção, raiva... Um monte de gordura que depois, bem lá na frente, viraria alguma coisa útil. Problemas não marcam hora prá entrar na vida da gente. Mas agora tá fácil! Antes de reclamar, misture tudo no tacho. Faça “sabão”. Sem querer fazer trocadilho, você vai se sentir de alma lavada.

Ah! E se sobrar um tempinho, pegue todo esse sabão e arrume um canudo. Lembra como era gostoso? Orlan Divo e Adilson Azevedo lembram e registraram prá ninguém mais esquecer na música Bolinhas de Sabão, de 1963.

Sentado na calçada de canudo e canequinha
Eu vi um garotinho fazer uma bolinha
Bolinha de sabão...
Eu fiquei a olhar e pedi para ver quando ele me chamou
E pediu pra com ele brincar
Foi então que eu vi como era bom brincar com bolinha de sabão
Ser criança é bom...
Agora vou passar a fazer bolinha de ilusão

08 setembro 2006

Varanda não é alpendre

“To com saudade de sentar no alpendre lá de casa...”

E estava mesmo. Há muito tempo não fazia isso. Mas nem deu prá terminar a frase. Verinha, a amiga que estava comigo na hora, ficou me olhando com cara de espanto, esperando eu explicar o que era “alpendre”. Sou paulista, mas morei muitos anos em Goiás e Mato Grosso do Sul. Me tornei goiana e sul matogrossense de coração. E desde que voltei para o Estado de São Paulo, já adulta e acostumada às expressões dos dois Estados que adotei, tive que me habituar a explicar algumas delas.

“Você não sabe o que é alpendre?”
“Não!”
“Alpendre? Que fica na frente da casa?”
“Ah... A varanda?”

Não, não é varanda. Quando fui procurar um apartamento para alugar pela primeira vez, percebi que todos os corretores faziam questão de salientar: “Esse imóvel é ótimo viu? Três quartos, fica no 11º andar e o melhor, tem varanda!” Estou aqui escrevendo e olhando pela “varanda” do meu apartamento. Quase todos os outros prédios à minha volta também têm “varandas”. Agora finalmente descobri porque a tal “varanda” é tão importante no prédio. Porque aqui todo mundo acha que varanda e alpendre são a mesma coisa. Não são.

“Claro que é... É tudo a mesma coisa”, insistiu a Verinha. Claro que não é! E não sou eu que estou falando isso não, é o Aurélio! “Varanda: balcão, sacada, terraço”. “Alpendre: espaço coberto e aberto na fachada de uma casa, que dá acesso ao interior”. Mas a diferença não acaba ai. É simples de entender: quem é que vai ficar na varanda do 11º andar de um prédio olhando alguém passar?

Quando era criança adorava ficar no alpendre brincando de casinha. Sempre passava uma ou outra menina da rua, via a brincadeira e parava para brincar também. Depois fiquei mocinha e o alpendre ficou ainda mais interessante. Minhas amigas e eu passávamos as tardes de domingo sentadas no alpendre conversando. Ou fingindo que conversávamos enquanto esperávamos passar “alguém”interessante na rua. E hoje, quando visito meus pais, o mesmo alpendre é o lugar onde colocamos a conversa em dia, enquanto os vizinhos vão chegando prá esticar e participar da conversa também.

Conhecíamos todos os alpendres da cidade. Tinha alpendre tão grande que as festas aconteciam nele. Só nele. Não precisam nem entrar na casa. Imagine agora dar uma festinha aí na “varanda” do seu apartamento... “Ah, entendi! Alpendre é coisa de velho!”, concluiu minha amiga. Deve ser mesmo. Parece que isso tudo aconteceu há tanto tempo. Mas nossa, como era bom!

Se você sentar na “varanda” do seu apartamento, talvez veja um passarinho voando ali por perto. Talvez veja a “varanda” do prédio da frente. Mas se você tivesse um “alpendre” ao invés de uma “varanda”, provavelmente conheceria melhor seu vizinho. Talvez receberia mais visitas. Ou simplesmente teria prazer de sentar lá no finalzinho da tarde só para ler um livro, tomar uma cervejinha ou simplesmente ficar olhando o movimento.


Meus pais tem em casa tudo o que a tecnologia oferece hoje – televisão, canal a cabo, DVD, internet... Mas todo dia sentam juntos no “alpendre” para conversar. Eles sabem o que é um alpendre. São casados há quase 30 anos. E nunca moraram em apartamento com varanda.

Prá explicar melhor isso tudo, aí vai mais uma do João Pacífico (essa em parceria com Edmundo Souto), que sabe melhor que ninguém falar dessas coisas da nossa gente...

Alpendre da saudade

Às vezes fico no alpendre da fazenda
Contemplando a vivenda onde eu era tão feliz
E bem na frente um barranco ao pé da estrada
Foi passagem de boiada tão pisado
O chão me diz: por quê? Por que você mudou?
Por que se afastou de mim?
Eu sou apenas uma estrada não sou mais pisada
E tão abandonada, enfim eu sou apenas uma estrada
Não sou mais pisada e tão abandonada, enfim
De que me adianta esse alpendre da fazenda
Que eu troquei pela vivenda por ser tão cheia de pó
Mas era um pó cheio de felicidade, hoje é pó da saudade
Aqui eu chorando, aqui tão só
Eu sei, eu sei qual a razão
Pois o meu coração me diz
Mas quando eu pego na viola
Ela me consola, ela é que me faz feliz

07 setembro 2006

Em terra de cego...

Saber contar uma boa história é o mínimo que se pede na minha profissão. Mas às vezes, a história é tão boa, que eu nem sei por onde começar... Essa por exemplo, que você vai ler aí em baixo, é ótima. Tanto que nem parece ser verdade. Mas é, juro! Aconteceu mesmo e quem lembrou desse “causo” foi meu pai (aí na foto), que garantiu: é verdade mesmo! Vamos fazer assim, eu conto o que aconteceu e você tira suas conclusões.

Na década de 80 morávamos em Caçu, interior de Goiás. Lá pelos idos das campanhas políticas de 1989, tínhamos um vizinho sitiante chamado Manoel Barroso. Como todo homem do campo, era conhecido por gostar de tomar uma branquinha. Mas o que chamava a atenção mesmo no seo Barroso é que ele tinha um olho de vidro. Passei boa parte da infância tentando descobrir qual dos olhos era "de mentirinha"...

Durante a campanha do município vizinho ao da nossa fazenda, após um comício de um sobrinho seu, o seo Barroso sentiu aquela vontade de tomar uma cervejinha. Apesar do dinheiro ter acabado, nosso vizinho não se deu por vencido! Seguiu com sua camionete para o boteco mais próximo e não demorou muito para encontrar um desconhecido tomando a dita cuja cerveja que ele tanto queria...

Seo Barroso encostou no balcão e ficou fazendo fita por algum tempo. De repente, começou a “morder o ar”. Imagine a cena! É claro que chamou a atenção do rapaz que tomava sossegado sua cerveja... Sem pestanejar desafiou: “quer apostar uma cerveja comigo que eu sou capaz de morder meu olho direito?”. Não é todo dia que você escuta uma proposta dessa né? E aí, dúvida daqui, briga dali, a aposta foi feita! Mais que depressa o velhaco do Barroso tirou o olho de vidro e tascou-lhe uma dentada! A cara do sujeito que perdeu a aposta foi a mesma que você deve estar fazendo agora...

Mas a história não parou por aí não! Seo Barroso – que estava com muita sede naquela noite – propôs um novo desafio: “quer apostar outra cerveja que eu mordo meu outro olho?". O desconhecido matutou: “cego dos dois olhos este danado não é! Chegou aqui guiando esta caminhonete velha...”. A curiosidade venceu e seo Barroso garantiu mais uma cerveja! Sem pensar duas vezes, meteu as mãos na boca, tirou a dentadura e crau! Com jeito de quem já tinha feito aquilo muitas vezes antes, “mordeu” o olho esquerdo.

Seo Barroso conta que nunca tomou duas cervejas tão gostosas como naquela noite... E ainda me deu de presente esse causo que de tanto passar prá frente, já virou meio folclore. Mas é verdade, garanto! Quer apostar?

Fiozinho d'água

Um fiozinho d' água desviou de um riacho
Veio vindo serra abaixo e passou no meu pomar
Encontrou uma pedra ficou sua companheira
Brincaram de cachoeira e aqui ficaram pra morar.
E hoje da janela eu contemplo a cachoeirinha
Que ficou minha vizinha desde que a vi nascer
Seu murmúrio doce é um verdadeiro canto
É quem me serve de acalanto para eu adormecer

João Pacífico escreveu o poema acima em 1991. Em 1998, fez questão de recitá-lo em um almoço com amigos, no dia 28 de dezembro, dois dias antes de morrer, aos 89 anos. Viu durante seus 89 anos o mundo que ele conhecia mudar de cara dezenas de vezes. No entanto conseguiu manter cristalina sua pureza, sua “paciência” que acabou lhe rendendo o apelido de Pacífico. Como um fio d’água ele viveu e desviou riachos, curvas e pedras para chegar ao seu destino.
Um fiozinho d' água desviou de um riacho...
Passei boa parte da minha infância na fazenda. Nesta época meu pai tinha o costume de sentar ao meu lado depois do jantar. No alpendre (é assim que os goianos chamam a varanda da frente da casa) ou no meio do terreiro, a gente ficava conversando, falando um pouco de tudo.
Sem energia elétrica na fazenda (portanto sem televisão), tínhamos tempo de sobra para conversar sobre o que quiséssemos. Foi sem dúvida um dos melhores anos da minha vida. Só que aí eu cresci.
Mudamos para a cidade e nossas conversas ficaram cada vez mais curtas. Hoje, longe de casa, sinto saudade da falta de luz elétrica que me permitia ver todas as estrelas no céu. Sinto falta da brisa fresca que tomava conta de toda a sede da fazenda durante a noite. Do cheiro do mato, de café torrado, do leite no curral... Mas sinto saudade mesmo é do tempo...
Hoje quando a saudade aperta me sinto como o fiozinho d’água de João Pacífico, desviando dos riachos. Em momentos assim fecho o olho e consigo até sentir o cheiro do mato. Dói um pouco, mas também ajuda a continuar procurando o caminho do mar...

Me dá licença estou chegando lá do mato
Moro longe desse asfalto
Atrás da serra é o meu rincão
Lá onde eu moro
Não existe luz na rua
Moro onde nasce a lua
Que tem nome de sertão
E não reparem na minha simplicidade
A grande felicidade
Foi nascer neste lugar...


Trecho de Gostinho de Saudade de João Pacífico e Piraci

Se me chamam de caipira

Em 2005 a TV Cultura de São Paulo transmitiu o documentário Quem Tem Medo de Ser Caipira?. Achei engraçada a pergunta porque cresci na fazenda ouvindo meu pai falar de seu orgulho em ser caipira. Aos poucos fui associando a imagem de caipira a imagem do caipira que eu tinha em casa: um caboclo forte, trabalhador, de coração mole e apaixonado pelo Brasil.
Cresci. E hoje sei que também sou caipira. Por isso quando vi o anúncio do documentário fiquei me perguntando como alguém poderia ter medo de ser caipira. Medo de ser aquilo que eu mais me orgulho.

O fato é que muita gente ainda confunde o que é ser caipira. Enxergam apenas aquele bicho do mato, idealizado por Monteiro Lobato, o matuto inocente e sujeito a gozações. Por certo quem ainda “tem medo de ser caipira”, precisa antes de mais nada estudar a fundo a história desse País feito, formado e sustentado por muitos caipiras.

A ignorância em relação à cultura caipira é tamanha que até mesmo nossos líderes já mostraram não conhecer seu povo. Em 1996, durante uma viagem diplomática a Lisboa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que o povo brasileiro “tinha mentalidade caipira, por rejeitar a globalização e a idéia de relacionar-se com o mundo”. É bom que fique claro a diferença: não estou falando do sertanejo, estou falando do caipira mesmo. Zé Mulato e Cassiano souberam como poucos explicar o que quero dizer. Nos versos de Navegante das Gerais, os dois cantam:

Se me chamam de caipira

Fico até agradecido
Pois falando sertanejo
Eu posso ser confundido
(...) Defendo nossas raízes

Por isso tenho brigado
Não escondo minha origem
Sou caipira liberado
Minha modinha é singela

Igual a flor do cerrado
Mas é sertão brasileiro
Tudo o que eu tenho cantado
Infelizmente o que vejo

É um bando de sertanejo
Com mania de importado

Os jornalistas Assis Ângelo e Mouzar Benedito também já apontaram em seus estudos as diferenças entre o caipira e o sertanejo. "A música caipira é feita pelo homem da roça, sem influência do country americano, sem instrumentação eletrônica, apenas com viola e violão. Já sertanejo está mais próximo do country e das guarânias paraguaias”.
Prá quem ainda não entendeu o que é ser caipira, é muito fácil descobrir. Basta deixar de lado o “medo de ser caipira” , pegar o “caminho da roça” e atender o convite que Tião Carreiro e Pardinho fizeram em 1968 em sua música Encantos da Natureza:

Tu que não tiveste a felicidade
deixa a cidade, vem conhecer
meu sertão querido, meu reino encantado
meu berço adorado que me viu nascer

venha o mais depressa, não fique pensando
estou te esperando para te mostrar

vou mostrar os lindos rios de águas claras
e as belezas raras do nosso luar


***Na imagem, o quadro de José Ferraz de Almeida Júnior, 1893, "O Caipira Picando Fumo", exposto em Pinacoteca de São Paulo

Franguinho na panela

Tenho o costume de deixar o rádio ligado enquanto escrevo. A música me ajuda a trabalhar melhor. Nem sempre estou prestando atenção no que está tocando, mas a melodia que invade o lugar parece invadir a mim também.

Às vezes, quando não decido o que quero escutar, deixo o rádio ligado em alguma estação. Hoje, enquanto me preparava para escrever, ouvi uma melodia conhecida, aumentei um pouco o volume e lá estava. As vozes que entoavam a canção não eram as mesmas que eu conhecia. Mas a música era a mesma que Moacyr dos Santos e Paraíso escreveram há muito tempo e que Craveiro e Craveirinho gravaram: Franguinho na Panela.

Por um instante a música me fez voltar a ser criança. Quem nasceu onde a terra é mais vermelha, onde a gente acorda escutando passarinho e o céu fica colorido no fim do dia, vai entender o que quero dizer. A comida da roça para mim tem um gosto diferente, gosto de infância.

Cresci numa fazenda no interior de Goiás. Domingo era sinônimo de galinha caipira feita na panela de ferro e fogão a lenha. Com aquele “caldinho” gostoso que a gente misturava no arroz com feijão.
Em dia de festa o almoço saia da varanda e ia para baixo da sete-copas que ficava no quintal. A mesa era improvisada: algumas tábuas sustentadas por dois cavaletes. A gente sentava em volta, nos bancos improvisados também com algumas tábuas e tocos de madeira. Minhas primas vinham da cidade e a gente ficava ali, entre histórias e causos dos mais velhos, rindo das piadas que nem sempre a gente entendia, mas ria mesmo assim.

De vez em quando saia briga na hora de escolher o pedaço de frango na panela. Desde muito pequena, aprendi a brincar com aquele pedaço do frango que tem um osso em formato de "v". Acreditávamos seriamente que quem quebrasse o maior pedaço daquele osso tinha direito a um pedido. A esta altura já não me lembro quais eram os pedidos que eu fazia, mas me lembro da decepção quando perdia o direito de fazê-los.A letra da música que tocava no rádio é muito simples. Simples como foi minha infância. O que me encanta nela, entretanto, é a pureza utilizada para dizer como a vida pode ser intensa, simples e ao mesmo tempo encantadora.

Com pouco mais de seis ou sete anos, eu só precisava de um “franguinho na panela” prá me fazer feliz. E hoje, apenas a lembrança dele fez meu dia ficar muito melhor...

Compondo uma história



E no começo era o som, a melodia.
Aos poucos, lentamente, a música também passou a ser letra e poesia.
E com o passar dos anos a música transformou-se em interpretação, atitude, dança, emoção.
Não trabalho com música, sou jornalista. Mas, como já disse Marcelo Spalding Perez, “para falar de música não é preciso fazer faculdade, nem tocar algum instrumento. Em compensação podemos escrever como os poetas, que transformam tudo em versos”. Então, para falar de música nesta primeira postagem, escreverei com as mãos, o ouvido e o coração.
Gosto de citar trechos de músicas em meus textos porque o universo musical brasileiro é imenso, rico e maravilhosamente belo. A maioria das músicas tem a sabedoria genuína, intrínseca de um povo que nasceu junto à lida, afeiçoado ao trabalho. Gente que luta e batalha com garra e fé. Que reverencia com gratidão os pequenos grandes prazeres desta vida.
Os compositores Renato Teixeira e Almir Sater fazem parte deste universo e num dia de inspiração (típico das raízes brasileiras) compuseram:

Cada um de nós compõe a sua história
E cada ser em si carrega o dom de ser capaz, de ser feliz


Com um site novinho em folha, “uma página em branco” pronta para ser escrita, Viola Quebrada é mais um desafio que começa com a competência de fazer, contar, de compor histórias. Ser capaz de transformar em frutos as sementes que são semeadas agora. Porque como já diz o sábio cancioneiro brasileiro, cada um carrega o dom de ser capaz...