16 novembro 2007

Linha e agulha


Era uma vez, uma camisa que virou menina. Uma meia que virou cabelo, uma bermuda que virou sapato e no lugar do coração, um amontoado de retalhos e algodão. "Peraí que só falta mais dois pontinhos no dedão do pé", avisava minha mãe. E pronto! Foi assim que nasceu a Filó. A Filó topava todas: a gente ia para o córrego? Ela era a primeira a cair na água. Comer goiaba no pé? Vichi... Ela chegava lá em cima primeiro que todo mundo. Bolo de barro? Quanto maior, mais feliz ela ficava... E aí quando o dia acabava e começava a disputa pelo chuveiro, a Filó ficava lá no quarto quietinha, só esperando amanhecer de novo. De vez em quando ela dava um susto na molecada! Mas aí rapidinho a gente corria prá casa com ela no colo e minha mãe (que já deixava a linha e a agulha no jeito), fazia a Filó "sarar" rapidinho. Cinco minutos e ela estava novinha em folha para fazer qualquer coisa. Isso já faz muito tempo. E prá falar a verdade já fazia muito tempo que eu não lembrava da Filó... A gente perdeu contato, se afastou. Eu fico imaginando o que ela está fazendo hoje porque naquela época de pé de goiaba e bolo de barro, lembro que queríamos ser arqueólogas. Perdi a conta de quantos buracos fizemos no quintal da fazenda (sob os protestos da minha avó) procurando ossos de dinossauros e vestígios de alguma civilização perdida. Ta achando o que? Brincadeira de criança é coisa séria! Mas o que eu estava contando é que a Filó sumiu. Cresceu, tomou outros rumos. Bons tempos aqueles em que a gente remendava todos os problemas do mundo com linha e agulha...


"O tempo foi se passando e ela se desmanchando
E hoje quem olha pra ela não diz quem é..."

Boneca de Pano, Assis Valente

07 novembro 2007

Palmas


Sábado, sete e meia da manhã. Isso lá é hora de ligar para alguém? Acordei tropeçando no chinelo deixado ao lado da cama, tentando achar a porta e o telefone que tocava. "Alô?". "Flá? Escuta, o Paulinho batendo palma...". Foi assim, com as palmas do Paulinho, que meu dia começou.

Conheci o Paulinho há poucos meses. Dois ou três no máximo. A gente se deu bem logo de cara: gostamos de música, de chocolate e de desenhar. E passamos horas assim em silêncio, levados pela música e pelos traços coloridos que saem como mágica das pontas do lápis de cor. Temos quase a mesma idade - ele tem 27, eu 26. Mas vivemos em mundos completamente diferentes: eu vivo de correria, reclamando da falta de tempo, dos problemas que eu mesma crio, do que gostaria de ter feito, do que adoraria “não” ter feito... O Paulinho não reclama. E tem todo o tempo do mundo.

Cheguei a ler algumas coisas sobre autismo há algum tempo por curiosidade. Mas na prática (como tudo na vida), a teoria fica bem distante da realidade. Senti isso de perto quando conheci o Paulinho. Ele não chega a ser indiferente, mas não entende muito bem o que acontece a sua volta. Na maior parte do tempo se comporta como se as outras pessoas não existissem. Às vezes rejeita o contato físico e nos olha como se não estivéssemos ali. Não reage a alguém que fale com ele ou o chame pelo nome. E o mais difícil (talvez o mais doloroso para quem está o tempo todo com ele), é sua dificuldade em mostrar suas emoções - exceto se estiver muito bravo.

Uma vez por semana eu paro tudo para desenhar com o Paulinho. Descobri que ele gosta de Renato Teixeira (como eu disse, a gente se parece...) e por duas vezes, enquanto escutávamos música e desenhávamos, tenho certeza – ele sorriu para mim. Foram dois momentos únicos. Porque ali, no mundo do Paulinho, nossas vitórias são outras. Um sorriso é suficiente para ganhar o dia, a semana, o mês inteirinho. São frações de segundo que me garantem: ele sabe que estou ali.

Há alguns dias assisti ao filme do argentino radicado no Brasil, Hector Babenco: O Passado. Um dos personagens da história (que também não sabe lidar lá muito bem com seus sentimentos) dispara ao longo do filme: “fala agora, antes que seja tarde”. O Paulinho vai embora para outra cidade nos próximos dias. No último sábado, enquanto a mãe dele organizava algumas coisas para a mudança ele encontrou no meio da bagunça um álbum de fotos. Quando viu uma foto nossa juntos, começou a bater palmas. Poderiam ser só palmas. Para mim? Foi uma declaração de amor de um amigo que soube como poucos mostrar todo o seu carinho...

Vai saber quanta gente está esperando você “bater palmas”.
Ou só falar. Falar agora, antes que seja tarde...


“Os verdadeiros amigos do peito, de fé, os melhores amigos (...)
Sabem entender o silêncio e manter a presença mesmo quando ausentes
Por isso mesmo apesar de tão raros, não há nada melhor do que um grande amigo”

Renato Teixeira