27 dezembro 2006

Quase igual... mas diferente

Me perguntaram essa semana: “quem toca violão é violeiro?”. Não, não é. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa... Apesar do formato parecido, olhando de longe até parece tudo igual. Só parece.

A confusão vem de longe. No início do século passado, o termo viola era usado para se referir aos dois – violão e viola. Essa história começou em Portugal, um dos berços dos instrumentos que afinal de contas, se não são iguais, são parentes bem próximos. O violeiro e compositor Gustavo Pinheiro Machado explicou bem isso: “a viola tinha pais portugueses, o violão tinha pais espanhóis. Ambos eram netos de mouros e bisnetos de hebreus”.

Qual é a diferença então? A viola tem 800 anos. O violão, entre 200 e 250. A diferença principal entre os dois instrumentos é que a viola, um pouco menor que o violão, tem várias afinações e possui cinco ordens de cordas, o que totaliza dez cordas. Já o violão, além se ser maior, possui somente seis cordas individuais.

Mas a diferença entre a viola caipira e o violão vai muito além do número de cordas. O instrumento eleito por músicos como Almir Sater e Tião Carreiro, possibilita cerca de 30 afinações, batizadas com nomes inusitados, como rio abaixo (em sol), cebolão (em mi) e boiadeiro (em lá).

O fato é que essa dupla – talvez a mais famosa do Brasil – registrou até aqui fatos e situações dignos de permanecerem no tempo. Pessoas e histórias que vencem o tempo através da música...

25 dezembro 2006

Natal não é data

Pronto, acabou o natal. A gente passa o mês inteiro correndo atrás dos presentes, preparando a ceia, esperando o especial do Roberto Carlos... E aí pronto, acabou.

Eu amo o natal. Não a data. Porque a data passa assim num piscar de olhos. Luiz Carlos de Castro Palma – mais conhecido como “Batata” – é jornalista e produtor rural em Altinópolis, interior de São Paulo. Li um artigo seu que dizia “natal não é data, é lugar”. Taí, concordo.

Quando eu era criança o natal começava bem antes do natal... Primeiro chegavam os tios e primos de longe – era o primeiro sinal. Logo depois lá estava minha avó no terreiro apartando os frangos da ceia. No curral já esperavam o boi e o carneiro que fariam a festa nos dias seguintes. Sim, dias. Porque a festa não se resumia na ceia. Ela começava antes e terminava bem depois...

O cheiro da festa infestava a casa toda. Prá todo lado tinha alguém cuidando de algum detalhe. Ai começava a revelação do amigo secreto - que reunia nossa família, os empregados da fazenda e os amigos que vinham comemorar com a gente.
No meio do terreiro uma mesa improvisada com dois cavaletes e tábuas, exibia a fartura do sítio...

De repente a gente ouvia um barulho – sempre eram as crianças que ouviam primeiro. E lá vinha o Papai Noel empurrando uma carriola cheia de presentes. Um dia achamos a roupa do Papai Noel no guarda-roupa da minha mãe. E o natal ficou ainda mais engraçado...

Depois da ceia, no dia seguinte, a chapa do fogão a lenha sempre quente esquentava o que havia sobrado. E a festa continuava, até o último convidado ir embora e sumir lá na frente, depois do mata-burro...

“Natal não é data, é lugar”. Deve ser mesmo.

O natal desse ano já está acabando e enquanto eu estou aqui, escrevendo mais dos milhares de artigos de natal que surgem nessa época, não me lembro de nenhum natal mais gostoso do que os passados nessa época da fazenda. Realmente não era o natal, era o lugar...

Prá terminar o natal desse ano então, aí vai a letra de “Calix Bento” – prometo falar das folias de reis depois!

Ó Deus salve o oratório
Ó Deus salve o oratório
Onde Deus fez a morada
Oiá, meu Deus, onde Deus fez a morada, oiá
Onde mora o calix bento
Onde mora o calix bento
E a hóstia consagrada
Óiá, meu Deus, e a hóstia consagrada, oiá

De Jessé nasceu a vara
De Jessé nasceu a vara
E da vara nasceu a flor
Oiá, meu Deus, da vara nasceu a flor, oiá
E da flor nasceu Maria
E da flor nasceu Maria
De Maria o Salvador
Oiá, meu Deus, de Maria o Salvador, oiá


Acima, foto de Sérgio Araújo no acervo do Museu da Casa do Pontal, no Rio de Janeiro/RJ

08 dezembro 2006

O mago da viola

Apenas dez dedos... mas pareciam milhares

Numa época em que se fala tanto de magos – que vendem milhares de livros e arrebatam milhões em todo o mundo – resolvi hoje falar sobre o “mago da viola”: Renato de Andrade. Tenho falado bastante dele nos últimos dias e achei que já estava passando da hora de falar dele aqui.

Uns dizem que Renato ficou conhecido como “Mago da Viola” porque parecia ter mil dedos na hora de tocar – fato que fez esse mineiro de Abaeté ser reconhecido mundialmente como um dos gênios da música brasileira. Mas a história não pára por aí. Senta e escuta...

Diz que o Renato tinha um acordo com o “danado”, o “cujo”, o “mofino”, o “coisa ruim”... Aí uma vez perguntaram pra ele se a história era verdade. E ele, tinhoso que era, saiu com essa: contou que uma noite sonhou que estava no inferno. Ouviu de longe um som de viola. Foi ouvindo, ouvindo, seguindo aquele som... Quando não agüentava mais de curiosidade, perguntou para um capetinha que tava ali perto que ponteado rápido era aquele. E o capetinha respondeu: “é o satanás pelejando para imitar um tal de Renato Andrade". Verdade ou não, essa história está no encarte do CD A Viola e Minha Gente, que por acaso, traz a música Renato e o Satanás num ponteado rapidíssimo.

Todo violeiro se considera o melhor da região – não suportam a idéia da existência de outros tão bons quanto ele. Renato, que não era diferente, não confirmava, nem desmentia as histórias que contavam a seu respeito. O que é verdade mesmo na história do violeiro é que ele começou seus estudos musicais ainda moço – não com a viola, mas com um violino. Foi o primeiro a levar a viola caipira para as salas de concerto, inclusive nos Estados Unidos. E mesmo depois de meia década se dedicando à viola, dedilhava e estudava o instrumento que o fez tão conhecido todos os dias.

Parece até mais um causo, mas esse é verdade: Renato de Andrade foi – pelo menos até agora – o único violeiro capaz de tocar cinco mil notas por minuto. A rapidez dos seus dedos rendeu obras como “Formigueiro”, considerada entre as composições de Renato, a música de mais difícil execução. O jornalista Sérgio Gomes, estudioso da cultura caipira, explica que a música “Formigueiro” é inspirada em uma famosa peça clássica: “Ela é inspirada em Moto Perpetuo, de Paganini, um grande violinista italiano que criou esta obra exatamente pra mostrar a capacidade que ele tinha de realizar uma quantidade imensa de notas num mesmo compasso.” A rapidez de Renato Andrade na música Formigueiro chega a 15 notas por segundo!

O Mago da Viola, com seus casos e mil dedos, viajou fora do combinado no dia 30 de dezembro de 2005. Seu Manelim, outro violeiro mineiro dizia: "usa que serás mestre". Renato usou sua última violinha (teve mais de 30 durante toda a vida) até não poder mais. Onde ia, a viola ia junto. “Violão em todo lugar tem, mas viola não é assim”, dizia o violeiro. Renato foi mago, feiticeiro, violeiro... Cada um que o conheceu lhe dá um apelido diferente. Mas uma coisa ninguém discute, seu Manelim estava certo: Renato Andrade foi mesmo um mestre...