30 setembro 2006

Pingos

“Hoje vai chover”. Ainda não eram nem 8 horas, o sol já estava alto, mas eu sabia! Ia chover!

Estava esperando essa chuva desde que começou a primavera. São as melhores chuvas do ano: o clima está ameno, a chuva não é tão gelada e a gente pode sentir de longe aquele cheiro de terra molhada... Eu sabia que hoje ia chover. E choveu mesmo!

Quando era criança, presenciei várias vezes os peões da fazenda e meu pai, esperando ansiosos por sinais de chuva no céu. Pra eles a chuva era sinal de boa colheita e gado gordo no pasto. Pra mim era mais uma oportunidade de brincar na chuva – mesmo sob os protestos da dona Maria, minha avó. (Mulher incrível! A única pessoa que conheci que consegue citar pelo menos 15 doenças diferentes em menos de 20 segundos – todas resultado da chuva, claro!).

Agora ninguém mais toma chuva. Pode olhar, todo mundo corre dos pingos. Alguns porque a chuva estraga a “chapinha”. Outros porque tem medo de ficar doentes – devem ter falado com minha avó – e há quem simplesmente não tem tempo. Confesso que eu também não tenho mais tempo.
Mas hoje, quando vi a chuva que eu esperei por meses, lembrei com carinho das chuvas do sítio...

Quem depende da terra para sobrevier em algum momento já chorou de emoção ao ver o céu prometendo chuva para a lavoura, para o pasto, para os animais. É o que João Pacífico (meu querido!) e Raul Torres contam na música Pinto D’Água.

Em 1944 uma seca terrível assolava o interior paulista. Em Barretos, João Pacífico se preparava para uma apresentação na cidade quando viu os fiéis rezando e fazendo promessas numa procissão para que a chuva viesse. A reza inspirou o poeta que escreveu Pingo D’Água, depois musicada por Raul Torres. A letra fala sobre uma promessa por chuva e a última estrofe encerra o poema resumindo toda a emoção do homem do interior: fui na capela e levei três pingos d' água: um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá.

Coincidência ou não, choveu dois dias depois do lançamento de Pingo D' Água. Uns dizem que foi milagre, outros que foi coincidência. Mas choveu. E ninguém correu prá casa na hora que os pingos começaram a cair.

Em Goiás, durante o período de inverno, a falta de chuvas deixa a paisagem seca e amarelada. Mas aí, quando as chuvas chegam com a primavera, os pastos ficam coloridos: amarelo, branco, roxo. São os ipês, que transformam tudo em um jardim aberto. Mesmo com o mais frio e seco o inverno, aos primeiros sinais de chuva os ipês se enchem de flores.

Hoje, longe do cerrado goiano e dos pés de ipê, me contento com as cores do céu que parece receber pinceladas em dias assim, de chuva: azul, cinza, amarelo, púrpura... Como é que alguém pode correr prá casa sem olhar um céu assim?


Depois de um dia inteiro fechada respirando ar-condicionado, fiquei na dúvida quando a chuva caiu. Assim como Pacífico, não soube se os pingos d’água que molhavam meu rosto eram da chuva, ou do meu olhar...

Eu fiz promessa
prá que Deus mandasse chuva
Prá crescer a minha roça e vingar a criação
Pois veio a seca, e matou meu cafezal
Matou todo o meu arroz e secou meu argodão
Nesta colheita, meu carro ficou parado
Minha boiada carreira quase morre sem pastar
Eu fiz promessa, que o primeiro pingo d'água
Eu moiava a frô da santa, que tava em frente do altar
Eu esperei, uma sumana um mês inteiro
A roça tava tão seca dava pena a gente ver
Oiava o céu, cada nuvem que passava
Eu da santa me alembrava prá promessa não esquecer
Em pouco tempo, a roça ficou viçosa
A criação já pastava, floresceu meu cafezal
Fui na capela e levei três pingo d'água
Um foi o pingo da chuva... dois caiu do meu oiá

Pingo D'Água, Raul Torres e João Pacífico, 1944


Assista aqui, João Pacífico e Adauto Santos interpretando "Pingo D'Água" no programa Viola Minha Viola. exibido pela TV Cultura, em abril de 1992

Um comentário:

  1. Quando eu era criança, gostava de jogar bola na chuva. Tinha uma vantagem: eu era pequeno e, se caísse, me machucava menos. E ágil também.

    O cheiro de terra molhada me acalma, mas não me encoraja a sair da cama quando acordo.

    Acho que seu post serve para nos mostrar como nossos valores estão errados. Temos pressa de tudo e, para mim, pressa é uma forma de se viver menos. É pressa de morrer.

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